Lembram-se da recomendação de um casamento platónico, no máximo com um entusiasmado afagar das mãos, para os católicos recasados? Dom Manuel Clemente já veio esclarecer que se prestou a mal-entendidos, que o parco tamanho do documento pastoral não permitia a compreensão da importância (ou falta dela) dessa alternativa concreta e mais umas coisas.
Apesar da humildade de Dom Manuel Clemente, a discussão continuou, ainda corre por aí nas secções de opinião dos vários jornais. Pelo que venho dar os meus dois cêntimos sobre o assunto (a ver se se cansam definitivamente dele).
Comecemos por concordar no óbvio: nenhum católico divorciado se recasa para viver em abstinência com a cara metade. Isto não existe e a Igreja, conhecedora da natureza humana, sabe-o bem. Pelo que discutir essa possibilidade tem tanta utilidade como preparar documentos pastorais para a vida sem gravidade e como se deveria processar a comunhão através de escafandros herméticos numa missa campal.
Por que razão então surgiu num documento pastoral, como bem diz Dom Manuel Clemente reproduzindo o Papa Francisco (ao sancionar a carta dos bispos de Buenos Aires que formulavam a possibilidade)? Tanto mais que é sabido que a possibilidade de certos divorciados recasados comungarem é um dos pet issues do Papa (na linha, de resto, de outros ‘papáveis’ jesuítas como o falecido bispo de Milão Carlo Maria Martini). E que Francisco, bom membro da Companhia de Jesus (aqui ‘de Jesus’ é tanto performativo como descritivo) tem como inspiração cimeira a figura de Jesus Cristo. Sabem? Aquele lírico que passava a vida a falar de perdão e que tinha como mais importante o acolhimento e a salvação da pessoa em sofrimento que cumprir as regrazinhas (‘inhas’ é deliberado) da religião judaica (e que os cristãos, mais tarde, fizeram por emular).
Tal figura distraída, que devia saber melhor dessa coisa de ser filho de Deus e redentor, também infelizmente não deu para elaborar sobre doutrina sexual, assunto em que é notoriamente omisso. Como se esperaria de um padre da Companhia DE JESUS, não se torna um assunto (a sexualidade) que esteve ausente das preocupações de Jesus (isto se os Evangelhos contarem mais do que os bitaites dos integristas católicos) no alfa e no ómega da religião que o dito distraído originou.
Dou a minha resposta. Não falei com nenhum sj sobre este assunto. Mas conhecendo os jesuítas não me custa adivinhar por que razão Francisco deixou que a ridícula proposta da vida ‘em continência’ constasse de documentos sobre o assunto da comunhão dos recasados católicos. Trata-se simplesmente de dar aos obcecados integristas uma forma de salvar a face neste assunto, para não maçarem mais. Coloca-se lá que os casais recasados BONS não têm sexo e desta forma, os que têm, não sendo tão bons, quiçá devendo usar uma lanterna vermelha quando se aproximam de uma igreja (conforme recomendado por Jesus… oh, espera…), lá são admitidos à comunhão.
Assunto resolvido. Passemos à frente com esta sabedoria jesuítica. Afinal quem quer saber a opinião dos ultraconservadores católicos?
Posto isto (não necessitam agradecer-me a informação), só não passo à frente porque li coisas dos tais setores conservadores dando conta de como a abstinência sexual (dos leigos) se traduz em disponibilidade para um maior amor ao próximo. Aproveito para dar a minha experiência: tal ideia pode dar umas linhas bonitas, mas é treta.
Conheci algumas pessoas solteiras, dos dois sexos, que gravitavam à volta dos jesuítas, e que de forma evidente viviam permanentemente fora de relacionamentos e sem vida sexual. (Recasados sem sexo são como os unicórnios: nunca vi.) Regra geral, empenhados em obras de serviço aos outros, muito cumpridores, com bons resultados nesta espécie de produção religiosa. São também das pessoas de coração mais duro, menos caridosas, menos disponíveis para acolher o outro e as suas fraquezas e limitações, sobranceiras, moralistas, orgulhosas que conheci na vida. Há casos de pessoas nestas circunstâncias que me impressionaram tão mal que estão na prateleira dos que, podendo, guardo distância.
As pessoas leigas que escolhem a abstinência sexual podem ser instrumentos obedientes dos padres católicos. No caso dos movimentos ultraconservadores, essa tensão acumulada é até usada para atacar com violência verbal nunca vista, em todos os fóruns, aos católicos mais progressistas e o Papa. O mecanismo psicológico, nestes casos mais extremos, deve andar na linha de acreditarem que o sacrifício que fazem com a supressão dos impulsos sexuais os torna católicos tão puros que podem insultar, ameaçar e mentir sem restrições. Mas nada disto torna alguém melhor pessoa na linha dos Evangelhos e da caridade de São Paulo.
Os ultraconservadores portugueses parecem não ter perdido os hábitos de antes da eleição do Papa Francisco. Os jesuítas, por exemplo, andavam sob cerco, vigiados, com infiltrados que iam às missas (incomodados por estarem tão cheias) vigiar a comunhão sob as duas espécies e faziam depois denúncias inclusive sobre a disposição da igreja. Houve queixas a Dom José Policarpo que terminaram impedindo missas fora de portas com centenas de presentes. A Igreja portuguesa, objeto de um valente raspanete de Bento XVI de tão acomodada, parte tornava-se vivaça na hora de tentar dificultar que uma ordem não alinhada com os conservadores agradasse a tanta gente.
Com certos católicos até simpatizamos com a ideia de um cisma. Mas depois lembro-me do tal Jesus que os jesuítas tão bem me apresentaram, há tanto tempo a cuidar de mim apesar das minhas distâncias. Como diz o Papa, referindo-se aos gays, quem sou eu para julgar ou apontar o dedo ou excluir? E a resposta: ninguém.