Por volta da página 700 da monumental obra que é ‘2666’ de Roberto Bolaño, uma das muitas personagens que nos são apresentadas e que vivem as suas vidas através de uma escrita escorreita e elegantemente cruel, Azucena Esquivel Plata, deputada e jornalista na Cidade do México, a grande beleza da política mexicana, a herdeira de uma família antiga e em seu tempo prestigiada, conta a um jornalista da área da cultura, que convida para sua casa às tantas da madrugada, que em determinada altura da sua vida decidiu afastar-se da esquerda inútil, da esquerda que protesta e se juntou ao PRI, ao partido que na época há décadas governava e dominava o México, decisão que tomou cansada que estava de ser impedida de contribuir para o bem do país, e também porque julgou que podia melhorar as coisas se se inserisse dentro do poder, que a melhor forma de conseguir melhores escolas, melhores hospitais, melhores estradas, em suma, a única forma de lutar por um país melhor, seria através do sistema, por muito viciado que o sistema fosse, mudá-lo por dentro, infiltrar-se no poder instituído, seguir as regras do jogo e depois alterá-las. Claro que se enganou, como a própria o reconhece, e confessa, nessa conversa. Há um momento em que Azucena descreve o México, uma descrição incrível como a própria afirma quando diz que no México os erros “perdem o seu significado quando são cometidos dentro”. Dentro do sistema, “Os erros deixam de ser erros. Os erros, as cabeçadas na parede, convertem-se em virtudes políticas, em contingências políticas, em presença política, em pontos mediáticos a nosso favor. Estar e errar é, à hora da verdade, que são todas as horas (…), uma atitude tão congrutente como agachar-se e esperar.”

‘2666’ terá sido escrito na viragem do século, a conversa aqui descrita passa-se em 1997, mas lido agora lembra Portugal em 2022 e torna-se num alerta. Quando Pedro Nuno Santos, em entrevista à RTP, diz que não pensou em demitir-se depois de desautorizado pelo primeiro-ministro relativamente ao aeroporto porque “nós temos a capacidade e a maturidade e a relação para resolver esses momentos”. O ‘nós’; o eles, esse grupo fechado que desvaloriza crises políticas, crises económicas, crises sociais e que as reduz a nada mais que meros “momentos”. Para quê assumir a responsabilidade política se umas palmadinhas nas costas dão conta do recado? Para quê a demissão quando o erro do ministro é encarado pelo próprio como uma virtude política? Para quê complicar o que é simples? Para quê empolar os efeitos de crises que não passam de momentos, de “contingências políticas”? Para quê estragar o arranjo institucional que funciona? Porquê tudo isso se ser desautorizado em público se torna num ponto mediático a seu favor? Porquê, se à hora da verdade, a atitude mais congrutente é agachar-se e esperar?

E é esta a questão que se coloca: queremos ser o México? Aquele México? Julgo que não, nem mesmo os militantes e votantes do PS, no seu íntimo o desejam. É neste sentido que o discurso de Carlos Moedas nas comemorações do 5 de Outubro pode ser entendido. As reformas fazem-se pelos governos, mas não surgem de dentro; vêm de fora. São os de fora que estão insatisfeitos, os de fora que precisam de mudança, os de fora que se sentem forçados a sair do país; porque as alternâncias políticas não se fazem por dentro, mas a partir de fora, a partir de outros partidos, os governos mudam não porque se alternam os ministros, mas porque se altera o partido que os sustenta, se modifica a perspectiva que se segue, a orientação seguida, porque se pensa diferente, se age diferentemente. Porque se assumem responsabilidades. Porque queremos ser uma democracia adulta.

Embora resida em Lisboa não votei Carlos Moedas nas últimas autárquicas, mas isso não me impede que veja o óbvio, o cansaço e o desânimo, a desesperança de um país sem rumo. Essa falta de direcção é visível nas incongruências do governo que se deve à falta de alternância. Porque não se assumem responsabilidades. Porque, por muitos erros que os governantes socialistas cometam, os políticos do PS nunca perdem. Pedro Nuno Santos não se demitiu devido ao episódio do aeroporto e o mais certo é que não o faça por uma empresa sua ter beneficiado de um contrato público por ajuste directo; Fernando Medina foi derrotado em Lisboa e acabou como ministro das Finanças, não fez qualquer travessia do deserto como seria normal, como há uns anos era normal que fizesse um político que se prezasse. O país pára sem responsabilidade política, com a ideia que as reformas se fazem por dentro, em conversas privadas tidas em gabinetes por gente que se considera com “a capacidade e a maturidade e a relação” para resolver “momentos”. Se a mudança não vier de fora o país continuará à deriva. Económica, política, social, cultural e moralmente à deriva. Um país estagnado é um país apático que não se confronta a si mesmo. Um país agachado que espera. Queremos mesmo ser o México?

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