“Para que se consiga ter o sistema de Segurança Social de novo num trajecto de sustentabilidade, só há duas hipóteses: ou cresce o emprego ou se corta nas pensões.”
Esta frase não é minha, é de Mário Centeno, está numa das entrevistas que deu este fim de semana, neste caso ao Jornal de Negócios. Mas disse frases muito semelhantes nas outras e, pessoalmente, não posso estar mais de acordo com esta descrição da realidade. Num sistema como aquele que temos, em que são os descontos dos trabalhadores no activo que pagam as pensões dos que já se reformaram, num país só por cegueira se poderia afirmar o contrário.
Contudo, em política como em economia, o problema não está no diagnóstico, está nas soluções. E, no domínio das soluções, as propostas da equipa de Mário Centeno para o mercado de trabalho vão no sentido de tornar ainda mais difícil as empresas contratarem, logo mais difícil criarem mais emprego.
Numa outra passagem das várias entrevistas que deu nos últimos dias, aquele quadro superior do Banco de Portugal sublinhou, com números, que a diminuição do emprego nos nosso país nestes últimos anos ocorreu menos por via do despedimento de trabalhadores e mais por via do baixo número de novas contratações. De facto, num mercado de trabalho de funcione minimamente, há sempre pessoas a sair de umas empresas e a entrar noutras, algo que Mário Centeno até explica muito bem no seu ensaio “Trabalho: Uma Visão do Mercado”. Ora o problema, tal como ele o diagnostica, implica levar as empresas a criarem mais emprego, mais do que impedi-las de despedirem os empregados que hoje têm.
A proposta dos economistas do PS, que os leva a prever uma descida da taxa de desemprego surpreendente, passa, como se sabe, pela ideia de que aumentando o consumo privado e diminuindo marginalmente o custo da TSU para as empresas, mas retirando-lhes ao mesmo tempo o estímulo da descida do IRC (medida com que os socialistas até se tinham comprometido), estas vão investir e contratar mais. Não vou neste artigo discutir esta estratégia, que me parece condenada ao fracasso, mas apenas as medidas que o documento propõe para o mercado de trabalho.
Quem conhece os trabalhos e estudos de Mário Centeno sabe que ele tem vindo a denunciar há muitos anos aquilo que considera ser o “mercado dual” que existe nas relações entre trabalhadores e empresas. De um lado, os trabalhadores com contratos sem termo, que têm empregos protegidos e muitos direitos garantidos; do outro lado, os trabalhadores com contratos a prazo, que têm empregos precários e quase sem direitos. Num livro que eu mesmo escrevi com Helena Matos, “Este país não é para jovens”, recorri mesmo aos trabalhos de Mário Centeno para mostrar como essa dualidade funcionava a desfavor do mais mais novos, precisamente os mais qualificados e os que estão a chegar ao mercado de trabalho.
Mas se compreendo a obsessão de Centeno com a proliferação dos contratos a prazo, não compreendo a dificuldade do grupo de trabalho em perceber que o problema não está do lado dos contratos a prazo, está do lado da rigidez dos contratos sem termo. Só assim se entende o despropósito das propostas de alteração à lei do trabalho:
1. redução do âmbito dos contratos a prazo, limitando-o a situações de substituição de trabalhadores;
2. introdução de um regime conciliatório de cessação do contrato de trabalho, aplicável aos novos
contratos.
O primeiro ponto é excessivo e incompreensível, pois nem sequer contempla a situação de empresas que têm grandes flutuações no seu volume de trabalho ao longo do ano, para só citar a mais gritante aberração desta ideia. O segundo ponto mostra que os autores da proposta não têm nenhuma ideia de como funciona, na prática, o mercado de trabalho, o que não surpreende já que do numeroso grupo de “sábios” só um trabalha numa empresa privada, e logo uma empresa tão especial como a Galp.
Primeiro que tudo: o “regime conciliatório” que o PS se propõe introduzir já existe em Portugal, chama-se chegar a acordo para rescindir um contrato de trabalho. Só ocorre nessas condições, a de “um acordo”, e nada na proposta do grupo de trabalho fará com que tal situação se altere, o que de resto Mário Centeno reconheceu, quase ingenuamente, numa das suas entrevistas: “as empresas dizem que é difícil fazer” mas “se esta fosse uma prática regulamentar coerente e aceite em Portugal não era preciso recorrer aos contratos a prazo como se recorre”.
E então o que é que o PS propõe para que se torne “uma prática regulamentar coerente”? O que não faz sentido: equiparar as razões para o despedimento individual às do despedimento colectivo e aplicar-lhe as mesmas regras, o que até leva Mário Centeno a dizer que assim se “racionaliza o despedimento individual em torno de razões económicas e não se desprotege o trabalhador, porque não há alteração à justa causa”.
De facto só mesmo quem nunca teve responsabilidades numa empresa privada não entende, primeiro, porque é tão difícil chegar a acordos de rescisão de contratos e, depois, não tem a menor ideia da complicação que é montar as justificações para um despedimento colectivo. Mais: só quem vive no tempo das relações de trabalho típicas da primeira revolução industrial é que acha que só “razões económicas” podem justificar a necessidade de uma empresa dispensar o trabalhador A ou o trabalhador B. Só académicos habituados a verem tantos e tantos colegas encostados aos seus confortáveis lugares em tantas universidades e institutos públicos podem achar que, numa empresa privada, mesmo com lucros, é possível não só suportar o custo da sua inactividade, como efeito desmobilizador que têm sobre o resto das equipas.
Não basta olhar para as estatísticas e para os grandes números para compreender a realidade, e notoriamente é isso que acontece neste quadro de propostas. O que nele não se entende – ou então é uma escolha ideológica – é que sem facilitar mesmo as condições em que se pode rescindir um contrato individual, as empresas continuarão a recorrer a todos os expedientes possíveis, mesmo aqueles que resultam da economia informal, para não ficarem condicionadas por contratos que, mesmo com o sistema conciliatório, podem ser virtualmente eternos.
Mas há ainda um outro ponto que me choca especialmente: o dogma de que tudo isto é para o futuro, de que quem já tem contrato de trabalho verá a sua situação intocada. É o dogma dos “direitos adquiridos”, um dogma que criará novas dualidades no mercado de trabalho por muitas décadas, entre os “de antes” e os “de depois”, na prática, entre os mais velhos e os mais novos, precisamente o tipo de dualidade que denunciei no livro que citei atrás.
Este obsessão é, de resto, comum a várias outras propostas do relatório da equipa de Centeno, e está bem expresso numa outra entrevista, esta de João Leão ao jornal i, também membro do grupo de trabalho, onde este garante que “pensões em pagamento não serão cortadas agora nem no futuro”. Para além da audácia da afirmação, o que esta escolha feita pelo grupo de trabalho nos mostra é que se optou sempre por proteger direitos actuais e sacrificar direitos futuros. É assim que, na minha opinião, se pode matar aquela que até é uma das melhores ideias do relatório, a de descer a TSU.
Mário Centeno, de novo numa das suas entrevistas, diz que não é mais do que um empréstimo: hoje paga-se menos TSU, no futuro recebe-se menos pensão. O que não diz é que, assim, se vai agravar ainda mais a desigualdade existente entre os pensionistas de hoje e os do futuro. Os de hoje, mesmo quando foram beneficiados por cálculos extremamente favoráveis, não se lhes toca (são um lobby poderoso que vale muitos votos); os do futuro receberão proporcionalmente ainda menos do que já iam receber, algo que já os prejudicava muito face à realidade dos actuais pensionistas.
Não me parece pois que estas escolhas sejam apenas técnicas – são em grande parte escolhas políticas e ideológicas, o que é natural e deve ser assumido. O grupo de trabalho pode ter obrigado o PS a descer das nuvens (é muito significativo, do meu ponto de vista, que tenham desaparecido as lunáticas intenções de aumentar exponencialmente o salário mínimo, uma matéria sobre a qual o próprio Mário Centeno tem de resto estudos publicados), mas não deixa por isso de avançar propostas, como as referentes ao mercado de trabalho, que ao ficarem, por assim dizer, “no meio da ponte”, podem não resolver nenhum problema e ainda agravar a situação actual. Como tantas vezes tem sucedido, de resto, com a legislação de trabalho ao longo dos tempos.
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