O Brexit deixou muitos cenários em aberto e o “repensar” da UE prolongar-se-á durante meses. Mas seria importante que, desde logo, se concordasse no elementar: defender mais integração e “mais Europa” é insistir numa rota que entrou em colisão com a vontade dos povos europeus. E, como tal, o melhor caminho será, provavelmente, aquele que devolve à UE o seu sentido original – paz, democracia e prosperidade económica – através da livre circulação de pessoas e da defesa de um mercado livre no continente europeu. Tout court. Uma espécie de “back to basics”, como acertadamente sugeriu Filipe Alves no Económico. Só que a dificuldade desta solução não está apenas na desburocratização que este passo atrás implicaria. Está, sobretudo, na aceitação de alguns Estados (nomeadamente a Alemanha) em abdicar do seu poder de influência sobre o continente europeu. Mais cedo ou mais tarde, a pergunta terá de ser colocada: se estiver o futuro da UE em jogo, será a Alemanha capaz de dar esse passo e ceder poder?
A saída do Reino Unido da União Europeia tem, no plano político, uma consequência imediata: a entrega da liderança do projecto europeu à Alemanha, que tem a França no bolso e que, sem os britânicos, deixa de ter quem lhe faça realmente frente. O domínio alemão ficou reforçado e mais visível. Ora, por um lado, isso torna o projecto europeu menos apelativo, na medida em que a ausência do Reino Unido retira credibilidade e peso institucional a Bruxelas – sem Reino Unido e perante o risco de contágio para mais saídas, ainda há quem queira entrar? Mas, por outro lado, esse domínio alemão reforçado não só aumenta a influência dos alemães sobre as políticas europeias, como deposita a resolução da actual crise nas mãos de Merkel – a decisão até pode não ser formalmente sua, mas nada se fará sem o seu consentimento. Por isso, para a UE sobreviver à sua crise de legitimidade e iminente desintegração, já não basta discutir-se o que tem de ser feito – há também que ponderar se, na hora h, a Alemanha terá interesse e disponibilidade para o fazer.
Em condições normais, essa dependência na Alemanha seria meio caminho para o suicídio europeu. Aliás, muito do que tem corrido mal ao nível das instituições europeias tem partido do desequilíbrio de poder entre os vários estados-membros, para benefício das economias mais fortes e prejuízo das mais fracas. Contudo, estas já não são condições normais. Desde a vitória do Brexit, assistiu-se à instabilidade de líderes europeus reclamarem saídas rápidas e negociações punitivas, exigindo “mais Europa” e regras de aço para apertar as correntes da integração europeia – tudo no sentido errado. E dentro das instituições europeias, já ninguém confia em ninguém. Tusk e Juncker parecem desalinhados, os países fundadores da UE reúnem-se de urgência e à parte, os três mais poderosos isolam-se logo depois. Está cada um para o seu lado, está cada um por si. Ora, se a UE é, inequivocamente, o mais nobre projecto político dos nossos tempos, alguém fica descansado vendo o seu futuro nas mãos desta gente impreparada?
Claro que não. Então, quem sobra? Sobra Angela Merkel. Que, até ao momento, proferiu as declarações mais acertadas acerca do Brexit e das negociações com o Reino Unido – travando as pressas e os ímpetos punitivos. E que, quando os pilares europeus começaram a falhar na crise das migrações, assumiu a linha da frente da solidariedade europeia e da afirmação dos valores fundacionais da UE. É certo que esse currículo não serve de garantia de que, nessa tal hora h, decidirá pelo melhor para a UE, sobretudo se isso implicar a perda de poder da Alemanha. Mas, apesar de tudo, encontrar na chanceler alemã uma réstia de sentimento de pertença à Europa ajuda a manter viva uma ténue esperança na viabilidade do projecto europeu. Sim, mais do que nunca, está tudo nas mãos de Merkel. E, sim, desta vez, isso até pode ser bom.