1 Digo-o de cada vez: no nosso Oeste dão-se as boas festas a pé, por aí, fora, de rua em rua, de praça em praça. Saúda-se em nome próprio e com o brilhozinho exclusivo da época no olhar. Os cumprimentos são mais demorados mesmo se velozes, os sorrisos mais abertos mesmo se apressados. É a verdadeira “proximidade” que o Sr. Presidente estampou na agenda dos dias – e fez bem, o povo gosta – mas é uma proximidade não comandada: irrrompe, genuína e com viço.

E à noite há as luzes, na sempre renovada expectativa de “como estarão este ano?” mas aí devo dizer que o norte, todo o norte, dá cartas e basta reparar no maravilhoso cenário natalício do Porto que dá o mote e o exemplo. Há honrosas excepções, a sul, sabemo-lo, e mesmo Atlânticas, como o luminoso encanto que sempre envolve a cidade do Funchal. Presépios é que não, perderam o estatuto. Caíram num provocado desuso, chutados absurdamente para fora da quadra, intencionalmente quase a expurgando de qualquer gota de espiritualidade ou da procura do sagrado. Ou sequer da sombra da civilização judaica-cristã nosso berço e sinal distintivo. Assim vamos, nós, o país, a Europa, não “cantando e rindo” mas num galope de descristianização misteriosa mas persistentemente consentido, não se sabe bem em direcção a quê, nem – e eis a única pergunta que talvez interesse – porquê.

Claro que há muitíssimas casas e moradas* onde em festa e em família se faz um presépio celebrando o mistério do nascimento de Cristo e o recomeço que ele nos propõe. Mas a infecção do ar do tempo** ganhou uma velocidade tão assassina que não se sabe quem sobreviverá da infecção, quando ou em que estado. Qualquer dia, daqui dez, vinte, anos, restará alguma espantada Anunciação em algum museu do mundo? Uma comovente Sagrada Família, a prega esculpida do manto de uma Madona, o abandono de um Cristo crucificado? O Antigo e o Novo Testamento sumir-se-ão do arco temporal da arte? Estátuas, telas e imagens embrenhadas na história da nossa civilização e transmitindo-a com o sopro do génio e a inspiração do sagrado ficarão ocas de simbolismo pelo modo despido de qualquer sentido com que passarão a ser vistas – e se o forem? Muitas perguntas, nenhuma resposta: não as tenho.

2 Para a política também não tenho respostas, mas há uma certeza: está feia. Ficará ainda mais feia, é só deixar passar as festas que a fraqueza humana, a fealdade, a manipulação regressarão em força. Era para falar disso, mas. Mas em vez disso, abro um entre parêntesis bonito e deixo o feio a destilar intriga com os feios.

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E como o Natal também é encantamento recomendo um: assinado, produzido e encenado por Felipe La Feria, que parece ser ele próprio uma espécie de fazedor de “encantamentos”. Como os magos ou os feiticeiros. Tenho de resto de lhe agradecer, há anos e anos que me interrogava acerca de um tão silencioso esquecimento sobre Laura Alves. É agora minha obrigação expressar alto a minha gratidão ao Felipe : já tardava que alguém dos palcos resgatasse um prodígio que nos calhou em sorte a todos nós e não só espectadores, a todos nós. Sim Laura Alves era prodigiosa: um talento sem medida onde tudo cabia, a grande comédia, o drama, a tragédia. A pungência, o cómico, o derisório; o riso e a lágrima, a felicidade e a melancolia, o canto e a dança. Fez-se sempre lembrar Giuletta Masina a genial actriz, mulher de Frederico Fellini, quando eu muito nova a ia ver ao Monumental e depois nunca mais deixei de ir.

Laura Alves tinha o teatro na pele, era intuitiva, sensível, delicada, generosa. Uma grande mulher.

(Querida Laura sei que me está a ler, reivindico para mim ter sido a sua maior admiradora. Dentro e fora do palco.) Este espectáculo – chama-se apenas “Laura” – é uma homenagem vertiginosamente falada, cantada e dançada, onde tudo está certo e tem um toque de magia: o texto, o ritmo, a música, os cenários, o deslumbrante guarda roupa. Não é preciso ter-se sido contemporâneo da actriz para gostar de ir, é só preciso ir. Há certas pessoas – Laura Alves – que merecem ser conhecidas ou lembradas – ou ambas as coisas – pela plateia do país. É o mínimo que lhe devemos.

E porque os últimos serão os primeiros: se Sissi Martins, a actriz que interpreta Laura Alves com inesgotável energia e um imenso talento, tivesse nascido os Estados Unidos seria a sucessora de Shirley Mac Laine: são iguais nos dons teatrais recebidos e na estonteante versatilidade com que os aplicam.

Boas Festas!

* Imagino como Carlos Moedas tenha sido acidamente interpelado por repor a tradição do presépio na Câmara de Lisboa: a acidez é tal que se confunde qualquer gesto independente do “wokismo” com “Estado Novo”. Portugal tem nove séculos.

**E a propósito do ar deste tempo, descobri outro ar, puríssimo, o do novo Patriarca de Lisboa. Um bom presente de Natal para Lisboa, crente ou não crente, talvez mesmo um amparo na aflição de duas guerras, uma à nossa porta e parece caminhar para o mais inaguentável dos desfechos Entrevistei-o há um par de semanas para o Expresso — sairá para a semana – e confrontei-me com uma espiritualidade profundíssima, capaz de remover montanhas: interpeladora, desafiadora, tocante, está inteira e intacta no verbo e na atitude de D. Rui Valério. Um Patriarca que acabou de chegar – e um ainda Bispo das Forças Armadas prestes a deixá-las – não ilude nem teme a tarefa que tem pela frente. Vai ser interessante perceber como é que a Igreja de Lisboa, tão instalada, de um e outro lado, nas suas certezas, irá conviver – e seguir? – este desinstalado homem de Deus.