O primeiro-ministro António Costa e as ministras Helena Carreiras e Mariana Vieira da Silva assistiram em novembro à assinatura do contrato entre o Estado e uma empresa de construção naval holandesa para esta fornecer um navio porta-drones para a Armada, pelo montante de €132M+IVA. Aos contribuintes portugueses cabe pagar quase 30%; o resto cabe aos contribuintes europeus, que pagam o PRR; por isso, chamam “navio do PRR” ao porta-drones. O plano de pagamentos não foi divulgado (porquê?), mas já em fevereiro far-se-á um pagamento de €40M, creio, sem sequer ter projeto aprovado.
Este processo tem várias singularidades, que comento abaixo; e cujo resultado, prevejo, será desperdício e ineficiência, ao invés do que diz a propaganda do PS. Apenas mais um exemplo de como os socialistas maltratam o dinheiro dos contribuintes.
Desde 2021 que Gouveia e Melo vem conseguindo amplo espaço mediático, e manchetes, (também) com o porta-drones, como se fosse uma invenção sua e uma solução mágica, que faz tudo e barato. De facto, o conceito foi proposto em 2007 pela empresa britânica, British Aerospace. Ninguém adquiriu este tipo de navio e nenhum foi construído, nem um protótipo. E o estaleiro em Portugal que Gouveia e Melo escolheu para elaborar o projeto desistiu do concurso. Se passar de um casco, o porta-drones será um protótipo e um navio único. Protótipos e navios únicos, como sabe qualquer arquiteto naval, sofrem atrasos para resolver os imprevistos da inovação, e não gozam das economias de aprendizagem (nem de escala) que se alcançam em séries de navios iguais, pouco inovadores. Além de ser protótipo e único, as anunciadas 5 mil toneladas aumentam o ceticismo quanto a ter, em 3 anos, o navio construído e operacional, e com os vários tipos de drones a operar a bordo, e tudo dentro da verba agora – sublinho, agora – prevista.
Desde o programa naval de 1924, que os oficiais da Armada ambicionam ter o seu porta-aviões. Em 1952, quiseram manter a Aviação Naval, que conseguiram recuperar em 1990. As ambições corporativistas não são novidade. E não é novidade ver governantes ceder a pressões corporativistas. A singularidade está nesta cedência, às cegas e cara.
Vejamos mais singularidades. Desde logo, o contrato, de €132M, foi assinado por um quadro intermédio da Armada. Pelos muitos milhões e por ser uma decisão política, era de esperar que o contrato fosse assinado por um membro do Governo. Mas sendo alguém da Armada, era de esperar que se responsabilizasse Gouveia e Melo, “o inventor”. Mais: a competência legal para a aquisição de navios é do diretor-geral de Recursos da Defesa Nacional (art.14º/2.g e 2.k do DL 183/2014 e art.2º/2.j, 2.l e 2.n do DReg 8/2015). Aliás, passado um mês, foi este que assinou o contrato para adquirir mais navios para a Armada – sem a presença da ministra Helena Carreiras.
A par deste processo, Gouveia e Melo anunciou em setembro a aquisição de 17 (!) novos navios para a Armada. Desde 1982, que a Constituição (CRP) estabelece que compete ao Governo dirigir a política de defesa – deixou então de competir aos chefes militares; só o Governo tem agora competência constitucional e legal para decidir a aquisição de navios para a Armada. Dada uma violação tão flagrante da CRP, qualquer órgão de soberania devia ter corrigido publicamente Gouveia e Melo; nenhum o fez. E nenhum jornalista tratou de escrutinar o anúncio. Ficou clara a autonomia, em violação da CRP, que Costa e outros concedem a Gouveia e Melo. Por que não aproveitá-la? pensará ele…
Outra singularidade é o emprego do PRR para adquirir material militar. De facto, o porta-drones é um navio combatente para a Armada: a plateia na assinatura do contrato, as declarações públicas, a já referida propaganda do PS, e a ausência dos membros do Governo do Mar, desfazem a ficção do navio visar servir para tudo, incluindo fazer ciência – ideia expediente para obter o financiamento da Comissão Europeia, que, pelos tratados, se mantém fora dos programas militares nacionais. De resto, não é preciso ser arquiteto naval para saber que um navio que faz tudo, não é bom em nada.
Ainda outra singularidade, é que este navio combatente para a Armada não consta do Sistema de Forças, em vigor desde 2014, que concretiza o Conceito Estratégico de Defesa Nacional. O Governo não cumpre as normas legais para a aquisição do navio, nem o plano de forças militares a que o Estado se autovinculou. E acham-se todos virtuosos…
Mais uma singularidade é a ausência neste processo de especialistas em arquitetura naval com experiência em processos de aquisição de navios (sobretudo combatentes). Gouveia e Melo não tem formação nem experiência na matéria (sempre foi um operacional) e dirige o processo, com ajudantes que fazem o que ele manda, sem controlo político (não serei o único que não consegue ver as referidas ministras a exercer qualquer controlo ativo sobre este funcionário). Um modelo em plástico e umas imagens bastam para cativar e sugerir conhecimento aos observadores superficiais; até acharão suficientes 3 anos para projetar e construir um navio totalmente original, cuja carga (“payload”, como dizem os arquitetos navais) nem sequer está já especificada – ou agora chama-se “aprestamento” à payload? Não custa prever que o desprezo pelo saber e pela experiência dos arquitetos navais militares, familiarizados com os percalços que sempre ocorrem num processo de aquisição de navios de guerra (como a integração dos sistemas; a interferência e a compatibilidade dos vários sistemas a bordo; ou os inevitáveis compromissos entre requisitos e sistemas) e que sabem como os resolver por dever de ofício, vai conduzir a dificuldades evitáveis e desperdício de recursos. Não é inteligente. Além disso, dá-se mal quem recorre a curandeiros, em vez de médicos, para tratar doenças graves.
Não é uma singularidade, mas é de realçar a propaganda que Gouveia e Melo fez, de que o porta-drones iria beneficiar da colaboração da indústria e da academia portuguesas. Mas o contrato, para o projeto e a construção, foi assinado com um estaleiro holandês, para construir o navio na Roménia. O modelo em plástico e uns desenhos de arranjo geral não são um anteprojeto – são propaganda e parte da retórica para impressionar leigos.
Também não é uma singularidade por cá, atribuir verbas a projetos sem estudar os usos alternativos para servir o mesmo fim. Há muitos setores civis que beneficiariam de €132M; e mesmo os exércitos, ou só a Armada, tinham alternativas muito menos arriscadas e com benefícios sociais muito acima da despesa envolvida.
Realço ainda estes factos: Costa privilegiou Gouveia e Melo ao levá-lo a comandante da Armada, muito antes do limite de idade, e “atropelando” o antecessor; e Costa deu-lhe uma oportunidade única para este funcionário público realizar ambições particulares.
Como se explica isto? Só uma explicação florentina me parece aderir a todos os factos: Costa decidiu dar oportunidades para Gouveia e Melo ter notoriedade e palco mediático, para evitar que as massas se esqueçam dele e se apague a viabilidade da candidatura a Presidente da República; claro que não vence se concorrer, mas divide o espaço político da direita, em que o seu tipo de autoritarismo o coloca (patente ante todo o país no Caso Mondego) e facilitando deste modo a eleição de um candidato da esquerda.
Enfim, conjugaram-se as ambições particulares de Costa e de Gouveia e Melo, através da imagem e da retórica para obter o financiamento europeu do porta-drones; só que o resultado será desperdício de recursos – não é investimento e menos ainda inteligente. Das singularidades emerge só a banalidade do despesismo, típico dos socialistas no poder.