Num artigo publicado esta semana no Wall Street Journal, Walter Russell Mead, um dos mais proeminentes académicos norte-americanos, declarou que Joe Biden tem uma oportunidade de “conseguir uma vitória histórica” que lhe permitirá “reformar o mundo com vantagens para os Estados Unidos”. O plano de Mead é que Biden faça Vladimir Putin “pagar tão caro” pela invasão da Ucrânia que “líderes pelo mundo pensem duas vezes antes de desafiarem os Estados Unidos e o seu sistema global de alianças”. Este sentimento otimista não é veiculado apenas por Mead. Tenho lido várias vezes, em jornais americanos, opiniões parecidas a par das declarações que este foi o momento unificador que a relação transatlântica precisava para voltar a ter importância que lhe é devida.

É verdade que a NATO renasceu – e dificilmente qualquer presidente dos Estados Unidos pode prescindir dela, se os objetivos estratégicos norte-americanos continuarem a passar pela contenção da China – e, provavelmente por razões já explicadas aqui, não só para benefício europeu, mas também para bem dos Estados Unidos. Mas há pelo menos três questões em aberto que terão de ser resolvidas o mais rapidamente possível pela administração norte-americana, e que não têm resposta fácil. Estes são os três dilemas de Biden. Os dois primeiros estão relacionados com a mundivisão norte-americana, o último com questões estratégicas.

O líder do mundo livre não fez tudo o que podia pela Ucrânia. Não é só Volodymyr Zelensky que diz, a cada oportunidade que tem. É aquilo que se verifica. Há uma grande diferença entre o discurso quase triunfalista de Joe Biden – Putin vai pagar um preço muito alto pela invasão da Ucrânia – e a realidade. Até agora, quem pagou um preço muito alto por ter escolhido a democracia como tipo de regime foi a Ucrânia. Independentemente da resistência de Kiev, que muito se deve ao fornecimento ocidental de armamento militar e apoio financeiro e humanitário, as sanções punitivas à Rússia parecem pouco para quem quer liderar um bloco de estados que se distingue pelo tipo de regime e pretende defender os que a ele aderem. Biden terá de voltar a ganhar a confiança das democracias mais periféricas para poder voltar a desempenhar este papel e para o deixar, de forma credível, aos seus sucessores que estejam interessados em mantê-lo.

Como reformular a política externa norte-americana com a nova ameaça russa e a “parceria ilimitada”. Aliás, este papel de “líder do mundo livre” estava encapsulado numa determinada visão de ordem internacional postulada pela administração Biden. O diagnóstico está certo: estamos em fase – e eu diria em guerra – de transição de poder devido ao declínio norte-americano e à ascensão chinesa. O presidente Joe Biden dotou esta divisão de ideologia: as democracias tinham de se opor às autocracias que não respeitam o mesmos valores universalistas da paz e da dignidade humana. Ora, o diagnóstico veio precisamente a ser comprovado pela realidade. Mas ao contrário das contas americanas, a guerra não veio da China, veio da Rússia. E Moscovo, que era uma ameaça secundária, depois de invadir um estado soberano e de criar uma “parceria ilimitada” com Pequim, vem desafiar a mundivisão ocidental. Os Estados Unidos podem (e devem) continuar a considerar a China a maior ameaça à sua liderança internacional. Mas têm de reformular a sua política externa para ter em conta a ameaça russa.

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Como manter a confiança dos aliados do Indo-Pacífico sem desguarnecer a frente europeia. O problema começa com a política do retraimento estratégico. Desde Barack Obama que as sucessivas administrações norte-americanas têm tentado desligar-se dos seus compromissos supérfluos fora de portas. Mas a invasão da Ucrânia mostrou que as ameaças são muito mais vastas e, principalmente, mais urgentes do que se poderia esperar. Os norte-americanos, no papel que escolheram, não podem agora desguarnecer a NATO até que a Europa se reorganize. Mas também não podem descurar as alianças asiáticas e a necessidade de garantir aos aliados indo-pacíficos que podem manter a confiança nos EUA relativamente à contenção da ameaça chinesa. Até porque estados como o Japão, a Coreia do Sul e até a Índia têm corrido riscos de segurança por acolherem tão prontamente Washington como potência do Pacífico.

Há poucas coisas certas neste momento, mas há duas que podemos afirmar: a primeira é que a invasão da Ucrânia tem uma dimensão nacional-imperialista – no entender de Vladimir Putin, a Ucrânia não tem o direito de existir enquanto estado soberano, uma vez que é naturalmente parte integrante do território russo. Mas também tem uma dimensão internacional mais subjetiva, mas não menos importante: a rejeição da ordem valorativa norte-americana e da arquitetura de segurança europeia. Esta dimensão afeta profundamente os Estados Unidos, que figuram no discurso russo quase com tanta frequência como a Ucrânia. Secundarizar a Rússia, como Putin sente que o Ocidente fez no período pós-Guerra Fria, deixou de ser uma opção.

A segunda questão é que esta guerra se enquadra numa transição de poder mais vasta. Muito se joga na forma como sairmos desta guerra. Como qualquer guerra de transição de poder, esta já inclui, de forma indireta, todos os estados importantes do sistema internacional. A maneira como se negociar a paz terá grande influência na relação futura entre as grandes potências. E, consequentemente, nas nossas vidas.