As cheias voltaram à Alemanha, e como os números e as imagens têm mostrado, com contornos catastróficos.
Cheias de Verão são uma tragédia comum no centro da Europa. Basta olhar para títulos da nossa comunicação social nos últimos anos para encontrar vários exemplos: 2016 “Cheias no norte da Europa provocam mortos e avultados prejuízos”; 2013 “Dez mortos e milhares de desalojados devido a cheias na Europa”; 2011 “Inundações em países da Europa Central”; 2005 “Enchentes atingem Alemanha, Áustria e Suíça”; 2002 “O céu abateu-se sobre a Europa”. No caso do Reno, com oito séculos de cheias estudados, constatamos que fenómenos catastróficos se têm sucedido ao longo da história: 2007, 1999, 1876, 1852, 1801, 1673, 1570, 1566, 1480, 1424, 1374, 1342, 1275… (Wetter et al 2011)
Todavia, como já se tornou um hábito, logo um grande conjunto de vozes se levanta pretendendo que vejamos nisto uma trombeta do apocalipse a anunciar o fim do mundo. Inquina-se o debate, negligenciando o essencial e desculpando as governanças. Má governança na Alemanha, ícone das boas políticas ambientais para a nossa academia? Pois. Está à vista – e não faltam imagens de urbanizações construídas em leitos de cheia, naturalmente devastadas – que coisas destas não são exclusivos nacionais.
Thieken et al, 2016, realizaram uma avaliação multifacetada sobre o que foram as grandes cheias na Alemanha em 2013 e a sua comparação com as de 2002. Entre, sistemas mal dimensionados, aumento de exposição ao risco ou políticas zigue-zague antes, encontramos muitos pontos em comum com tragédias que nos são mais familiares. Os problemas são bastante similares, por exemplo, aos das cheias no Baixo Mondego. Até com a tirada de Matos Fernandes em “mudar as aldeias de sítio”, o que sendo à partida uma patetice, depois de bem espremido, tinha algumas gotinhas de sumo que se bebiam: efetivamente, mais sob a forma de barracões, edifícios de apoio agrícola, garagens, construções ampliadas para escritórios, etc. (não os históricos núcleos que desde sempre vivem com isto), multiplicaram-se construções em leito de cheia que não deviam estar ali. E, na Alemanha, existe mesmo um programa para mudar edificações, suportado por dinheiro federal, que talvez porque muito caro, pouco interessante, sub-avaliação do risco, etc., tem tido um desempenho muito limitado, restringindo-se a ações pontuais em habitações isoladas. Numa coisa como esta em que ano sim ano não há uma cheia e o sistema resiste e a terra continua enxuta/segura, acabam por se multiplicar as construções descurando o risco de ao fim de 10, 15 ou 20 anos, a coisa dar para o torto. Isto é bem evidente no estudo das cheias de Dresden, Alemanha: comparando as grandes cheias de 1845 com as de 2002, as primeiras até tiveram mais 15% de área inundada, mas enquanto no século XIX a área urbana era de pouco mais de 1/10, em 2002 metade da área inundada era urbana.
Este é o drama deste tipo de fenómenos: quando algo ocorre de 15 em 15 anos, há um intervalo de 14 anos de segurança (isto claro, mais ano menos ano). Nesse intervalo, durante os primeiros anos há medo, lembrança, voluntarismo político. Coisas aparecem novas, mudam governanças. Depois as pessoas vão-se esquecendo, o interesse desvanecendo, a propaganda propagando-se. Sem as coisas serem postas à prova, todos estão convencidos que o problema está resolvido (e muitas vezes a vulnerabilidade até se agrava). Um dia a coisa dá-se, e vem um ministro dizer que é obra de Deus (Albufeira) ou um Presidente dizer que foi algo imprevisível (Pedrogão). E em todas, ciclo após ciclo, a coisa parece que muda, mas… “é preciso que mude algo para que tudo fique na mesma” (Giuseppe Tomasi di Lampedusa). Não se pode dizer que em muitos aspectos nós ou eles não estejamos melhores e mais bem preparados para cheias ou incêndios de pequena dimensão mas bem mais frequentes. O problema está nos escassos mas severos eventos.
Como governar isto? Uma radicalizada discussão entre ideologia planeadora, controladora, tecnocrática, têm um ângulo de visão e o laissez-faire e individualismo. Claro que, ao contrário do que julgam os primeiros, tudo é política, e a vontade das pessoas é o cerne. E ao contrário do que julgam os segundos, algumas regras, padronização, eficiência no uso de dinheiro público enquanto prestação de serviços e minimização de riscos, etc, exigem uma governança qualificada. Por quase todo o mundo, é tempo da governança entender de vez que a política se faz “de, com e para” as pessoas — não é nada do que vemos, antes os vícios políticos a virem ao de cima (corrupção, compadrio, esbulho, alarvidades técnicas, etc…), e a fraca opinião de quem interessa (participação pública, limitada, mal publicitada, residual e ainda assim desvalorizada). Sendo não obstante verdade que “O povo, por ele próprio, quer sempre o bem, mas, por ele próprio, nem sempre o conhece” (Jean-Jacques Rousseau).
Este é, assim, um mal generalizado por todas as democracias e por todos os problemas ambientais (e não só). Não é aliciante divulgar ideias desde o início quando elas podem ser um trunfo eleitoral. Não é apelativo ignorar propaganda quando temos as costas quentes nos previsíveis anos de mandato. Para balançar as questões, discuti-las de forma alargada e participada, pesar inúmeros aspectos, para resultar em melhores governanças e bem estar social, todos nós temos que ter exigência para com os políticos de turno. É nisto que eles podiam andar a 200 km/h. Até porque, na Alemanha como cá, a 200 o carro polui mais… a diferença está na legalidade do ato (além de no exemplo).