Na sequência das eleições de Donald Trump, de Jair Bolsonaro e do Brexit, bem como o crescimento de vários partidos de direita radical na Europa, assistimos a uma crescente vaga de intelectuais e figuras públicas a anunciar o “fim da democracia liberal”, ou pelo menos a sua deterioração. O populismo tornou-se a palavra do momento. Este termo passou a ser utilizado abundantemente por cronistas e comentadores que pretendem explicar o mundo, pelos actores políticos que tencionam atacar os adversários, e mesmo pelos cidadãos “normais” em conversas sobre política com familiares e amigos. O populismo tornou-se a grande explicação do mundo.

Pessoalmente, seria a favor de uma moratória à utilização do termo “populista”. No entanto, dada a ubiquidade do termo, sinto-me na obrigação de escrever esta crónica sobre populismo e apresentar uma série de estudos cujas conclusões deveriam colocar em causa a confiança que depositamos nesse conceito como explicador de tanta coisa no mundo de hoje.

No discurso público, comentadores, políticos e cidadãos frequentemente utilizam o termo “populismo” como eufemismo para radical ou extremo. Quando querem classificar uma pessoa ou um partido como sendo de direita radical, esquerda radical, extrema-esquerda e extrema-direita dizem que este é “populista”. É menos incomodativo chamar alguém “um populista” do que “um radical”. Mas é perfeitamente possível um partido (ou uma pessoa) ter uma ideologia radical e não ser populista. Da mesma forma, um partido pode perfeitamente ser altamente populista no discurso e ter uma ideologia centrista ou mesmo não ter nenhuma ideologia coerente. O populismo é, portanto, habitualmente tratado na literatura académica como sendo uma “thin ideology” (uma ideologia de espessura muito fina) que poderá ser combinado com uma qualquer ideologia política mais substancial, da esquerda à direita. Estas ideologias mais substanciais costumam denominar-se de “hosting ideologies” (ideologias anfitriãs), porque são o prato principal que é apenas adornado pela camada fina do “populismo”. Ainda assim, a maioria dos cientistas políticos considera que o populismo é uma ideologia, composta por alguns elementos ortogonais à tradicional divisão esquerda-direita: ideias anti-elitistas, anti-pluralistas e centradas num “povo bom” amaldiçoado por elites ou minorias corruptas. Embora esta definição de populismo como “thin ideology” tenha ganho força alguns académicos consideram até que o populismo não chega a ser uma ideologia, mas apenas um estilo discursivo, um modo de falar e fazer política, ortogonal a qualquer pensamento ou posicionamento. Talvez me situe entre as duas posições, porém o mais importante é que, em ambos os casos, é possível separar o grau de populismo de um partido das suas posições substantivas.

Tudo isto pode parecer uma discussão meramente académica e semântica sem qualquer interesse prático e político para a maioria das pessoas. Mas não é. A distinção entre o que é populismo e o que é a ideologia substantiva é absolutamente essencial se queremos perceber o eleitorado, a evolução das várias famílias partidárias, e encontrar potenciais soluções para reduzir o descontentamento da população e a diminuição do peso dos extremos na vida política.

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Se as pessoas escolhem determinados partidos por causa da sua dimensão populista, isto significa que não concordam com as ideias e propostas políticas substantivas avançadas por esses partidos. Se for esse o caso, uma fatia considerável do eleitorado vota em determinado partido porque se sente descontente e impotente e utiliza o seu voto num partido anti-establishment para expressar esse descontentamento. No entanto, nesta versão dos factos, o estilo “populista” é uma espécie de feitiço mágico que seduz os eleitores menos instruídos e informados. O feitiço populista poderia, assim, levar os descontentes a votar “contra o seu próprio interesses”, isto é, em partidos com objectivos ideológicos, económicos e sociais diferentes dos objectivos dos descontentes que neles votam. Desta forma, os eleitores são “enganados”: votam em partidos achando que estes poderão resolver a sua má situação ou a má situação do país, mas esse voto não se traduz na melhoria das suas vidas. Frequentemente, os partidos anti-establishment acabam por não resolver nenhum dos problemas dos descontentes.

Uma outra opção é admitir que os eleitores não são parvos. É perfeitamente possível que eleitores que discordam de muitas das propostas políticas substantivas de partidos radicais e anti-establishment tenham a perfeita noção que não concordam totalmente com as propostas avançadas por esses partidos. Ainda assim, escolhem votar neles. Porquê? Porque decidem utilizar o seu voto de forma expressiva. Neste caso, como forma de expressar o seu descontentamento, mesmo que não acreditem que o seu voto terá qualquer consequência positiva ou instrumental. Ainda assim, na maioria destes casos, os eleitores estão geralmente minimamente informados sobre as posições ideológicas do partido no qual estão a votar e, apesar de poderem não concordar totalmente com elas, também não se sentem muito desconfortáveis com as propostas políticas subjacentes.

Claro que há ainda uma terceira opção. Muitos dos eleitores que votam em partidos de extrema-esquerda e extrema-direita podem realmente concordar, total ou parcialmente, com as propostas substantivas que esses partidos defendem. Com toda a conversa sobre o enorme poder do “populismo”, será que afinal de contas os eleitores não votam num partido por causa das suas mensagens populistas? É isso que nos tem dito a investigação mais recente sobre o assunto, realizada nos contextos partidários norte-americano e alemão. Os artigos tentam discernir o efeito da utilização de um estilo e linguagem populista do efeito da “ideologia anfitriã” (hosting ideology), qualquer que esta seja – da esquerda à direita. Os resultados são muito interessantes. Em geral, a investigação, realizada de forma totalmente separada por autores diferentes, encontra os mesmos resultados. Os eleitores não são sistematicamente afectados por mensagens populistas e escolhem o seu partido preferido baseado na ideologia e políticas públicas que esses partidos defendem e não por causa da utilização de uma retórica mais ou menos populista. Note-se que, em geral, os eleitores alemães são menos populistas que os americanos nas suas atitudes, mas ainda assim o efeito de um populismo “soft” é relativamente reduzido. O efeito da ideologia é muito superior ao do “populismo”, suposta causa explicativa de todos os males políticos da actualidade.

Naturalmente, o contexto português é marcadamente diferente dos contextos americano e alemão. Desde logo, enquanto nestes dois países os principais temas dos partidos mais populistas de direita tendem a centrar-se na questão da imigração, em Portugal esse discurso ainda não está consolidado. Apesar de algumas sugestões e tentativas, o Chega não parece ter como tema principal a imigração, mas sim uma mescla de vários temas. Penso que, actualmente, ainda não temos dados para saber por que razão os eleitores escolhem votar no Chega nem quais as suas posições políticas mais populares.

Pessoalmente, creio que a maioria dos eleitores não são estúpidos e não é possível manipular sistematicamente uma porção significativa do eleitorado, contra os seus próprios interesses. Pelo contrário, penso que aqueles que votam em partidos denominados “populistas” se dividem em dois grupos: aqueles que votam neles pela sua proximidade ideológica e aqueles que votam neles como forma expressiva de descontentamento, sem esperar que estes partidos resolvam grande coisa.