Nenhum aluno, no seu todo, pode ser definido em função das notas que tem em testes ou exames, assim como nenhum profissional espera ser reduzido à expressão mínima das avaliações em contexto laboral. Toda e qualquer forma de avaliação de desempenho escolar ou profissional é, por definição, incompleta. Precisa de ser calibrada através de outras informações e feedbacks, nomeadamente sobre os dons e os talentos, as capacidades inatas e as competências adquiridas de quem está a ser avaliado.

A formação humana importa tanto como a aprendizagem de cálculo matemático. A criatividade e a disponibilidade para a relação e a colaboração com os outros são aptidões tão essenciais como aprender línguas. A comunicação e a forma de expressão são críticas, mas a capacidade de lidar com o imprevisto, a resiliência, a atitude de superação, a abertura de espírito, a flexibilidade e a vontade de estar à altura dos desafios também são decisivas e precisam de ser tidas em conta. Numa quantificação final todas estas faculdades deveriam ter peso. Claro que os conhecimentos técnicos, as matérias específicas, e as chamadas hard skills são o básico dos básicos. São aquilo que os alunos têm que estudar e saber para passar de ano, para chegarem às suas áreas de especialidade e, no futuro, poderem exercer uma profissão.

Por tudo isto, dar notas ou atribuir pontuação é um exercício exigente e quase sempre arriscado. Podemos ser tremendamente injustos ou radicalmente parciais. A imparcialidade é difícil e a distância crítica também não é mais fácil. Avaliamos demasiadas vezes aquilo que os alunos sabem, mas nem sempre estamos atentos a quem verdadeiramente são, às suas inclinações naturais, às suas motivações de fundo e à sua individualidade. ‘Ser’ e ‘saber’ deviam ser verbos de conjugação imperativa em quem estrutura os sistemas de ensino, não apenas para quem testa e avalia em contexto de sala de aulas. Isto, porque muitas vezes os alunos sabem mais do que percebem. Tudo está à distância de um clic e ao alcance do saber, mas não basta colecionar sabedoria, também é preciso saber de que forma integram e processam o que sabem, como interligam e comunicam os conhecimentos, como os aplicam na realidade, como os usam para interpretar factos e acontecimentos da sua própria vivência e experiência.

Esta é a época do ano em que nós, professores, somos convocados a avaliar alunos e a atribuir-lhes uma nota, e todos sabemos como esta nota pode ser determinante para o futuro dos nossos estudantes. Uma nota pode condicionar ou favorecer toda uma vida. Pode mudar o rumo da história. Pode encorajar ou desencorajar. Pode construir ou destruir e, também por isso, muitos pais tendem a identificar os seus filhos com a nota que têm.

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Não são apenas os professores que correm o risco de ser injustos, portanto. Os próprios pais, em casa, podem ser os primeiros a relacionar-se com os seus filhos em função das notas que têm na escola. Se chegam a casa com boas notas, a relação é estável, há paz, harmonia, concessões e até mais proximidade, mas se as notas não correspondem às expectativas a relação endurece e pode tornar-se distante ou agressiva. Como se realmente um filho fosse apenas e só a sua nota.

Gostava de me deter sobre as expectativas dos pais, ainda antes de focar nas expectativas dos filhos, pois muita frustração, tensão e erosão nasce deste desencontro, deste grande clássico de todos os tempos que são as discussões familiares por causa das notas. Os pais que amam os seus filhos querem para eles o melhor, como é óbvio. É natural e é legítimo, mas a legitimidade perde-se quando a competição se torna uma regra inflexível e induzimos neles a ideia de que as notas são tudo. Quando o nosso olhar se foca única e exclusivamente na avaliação quantitativa, perdendo de vista a qualidade da formação humana de que precisam para chegarem à sua melhor versão pessoal e profissional. Toda e qualquer área de especialidade requer matérias específicas e uma reta avaliação setorial do conhecimento dessas matérias, mas também tem que implicar uma atenção às chamadas soft skills. Ou seja, as competências relacionais e de comunicação, e a formação humana que influencia a forma como se aplicam os conhecimentos na prática e determina como se vão exercer funções no mercado de trabalho.

As notas são sinais e funcionam como indicadores, mas não são tudo sobre alguém. Mostram como está a correr o processo cognitivo, dão sinais de como está a evoluir a aprendizagem das matérias específicas, indicam a progressão da marcha nos estudos, mas não dizem tudo sobre o aluno, muito pelo contrário. Sempre que são absolutizadas podem desviar a atenção de fases de desenvolvimento humano cruciais, mascarar traços de caracter essenciais, ocultar talentos e dons, contribuindo para apagar a marca individual de alguém que está em processo de construção e merecia ser olhado no seu todo, de forma integral, para poder ser melhor encaminhado.

Vale a pena voltar a uma evidência que nunca é demais recordar: todos evoluímos por fases e tal como não estamos sempre no nosso melhor na relação connosco próprios e com os outros, tal como nem sempre nos adaptamos ao nosso corpo e à nossa imagem à medida em que crescemos e nos transformamos, também as notas variam em função destas fases e da forma mais ou menos insegura como lidamos com o nosso crescimento e desenvolvimento físico, emocional e psíquico. Isto, para não falar da inclinação natural de cada um, estes mais para as matemáticas, aqueles para as artes, os outros mais para as línguas e humanidades. Muitos alunos considerados medianos ou sofríveis ao longo de anos sucessivos revelam-se bons alunos, ou até excelentes, quando escolhem as suas áreas preferenciais de estudo.

E aqui já se misturam as expectativas dos próprios alunos, pois o espírito competitivo torna-se implacável e a ‘cultura da nota’ pode ser devastadora nas escolhas que fazem e na orientação que dão aos estudos. Ter em conta as notas em matérias determinantes é necessário, estudar para as melhorar também, mas as questões da avaliação integral deviam ser um alerta para todos os que estão implicados no processo de ensinar, aprender e contribuir para a formação e o desenvolvimento de qualquer ser humano.

Uma vez aqui chegados, abro um parêntesis para chamar a atenção para uma atitude muito comum e perversa – embora não intencional! –  de pais para com os seus filhos. Falo da comparação. Comparar filhos e comparar notas é um pesadelo familiar e os comparados saem sempre a perder. Toda a comparação com outros devia ser proibida e apenas permitida a comparação de alguém consigo mesmo. Os outros podem e devem funcionar como referência, mas só isso e nunca servir como termo de comparação. Se nos compararmos ou nos deixarmos comparar apenas connosco próprios, então sim, poderemos medir a nossa evolução e fazer as correções de rumo necessárias. A comparação connosco mesmo serve para percebermos como estávamos e como estamos, ajuda a perceber para onde vamos. Sempre que nos comparamos ou deixamos comparar com outros, estamos a viciar o jogo e a alimentar comportamentos tóxicos. E fecho o parêntesis sobre os lados perversos da comparação.

E volto ao tema das notas para reforçar a consciência de que neste tempo de pandemia e Covid-19 todo o sistema de ensino e aprendizagem mudou e tudo se tornou digital, à distância, mediado por ecrãs, sem presença física, em aulas síncronas e lições assíncronas que mexem com a capacidade de foco e tocam na questão sensível e volátil da atenção. A atenção é um recurso escasso, escassíssimo, e é preciso ter em conta que do dia para a noite os estudantes de todas as idades passaram a aprender de forma diferente e com níveis de atenção ultra exigentes. Ora o ensino todo mudou, mas o sistema de avaliação não. E este é o ponto que me interessa juntar para concluir esta reflexão sobre as notas e a forma como chegamos a elas. Se todo o sistema de aprendizagem mudou e vai continuar a mudar, como é possível manter o sistema de avaliação? O que é que queremos ensinar? E o que é que estamos a valorizar? Nós, professores e escolas, mas também o mercado de trabalho, os empregadores, os diretores de recursos humanos  e as empresas.

Estamos em cima do final do semestre académico nas universidades e a chegar ao fim do ano letivo nas escolas e liceus. É urgente repensar as questões da avaliação e é imperioso perceber o que estamos a valorizar nas escolas e universidades. Acima de tudo é vital debater o tema da avaliação neste novo modelo híbrido, de blended learning que se anuncia para a rentrée de Setembro. Na próxima semana iniciaremos este debate público neste jornal. No dia 16, às 18h30, estaremos em direto a conversar sobre avaliações e notas, mas também sobre a formação humana integral que queremos dar aos nossos alunos para os podermos avaliar de forma mais completa, individualizada e justa.