Há uma maneira certa e segura para não resolver qualquer espécie de problema que se nos coloque: sermos incapazes de fixar a atenção nos casos particulares e concretos e logo voar para o reino do universal e abstracto, lidando com o particular e concreto apenas na medida em que ele encaixa no geral e abstracto tal como o entendemos e descurando tudo o resto.

Já dei há uns tempos este exemplo, que me diz pessoalmente respeito porque cheguei à idade em que as maleitas mais ou menos insidiosas nos atacam, capazes de nos levar desta para melhor. O Serviço Nacional de Saúde está caótico, é mal financiado, os tratamentos atrasam-se, médicos, enfermeiros e doentes (os célebres “utentes”) protestam, directores de serviço demitem-se um pouco por todo o lado. O que se faz? Procura o Estado resolver os problemas concretos? Não, é claro que não, era o que faltava. Passa-se de imediato para o universal, para o geral e abstracto, para o reino dos princípios eternos: discute-se uma nova Lei de Base da Saúde. Como  a logomaquia, a luta das palavras, tende a perpetuar-se indefinidamente, uma espessa corrente de fumo é lançada sobre o sofrimento e a angústia dos cidadãos inermes e poupa-se a chatice de resolver os problemas de que padece a ralé.

O salto para os princípios universais sem atenção prévia aos casos particulares (ou com voluntário e consciente silenciamento deles) é o último refúgio dos imbecis e o ambiente ideal para os fanáticos. Libertos das desconfortáveis amarras do empírico, os indivíduos entram no belo mundo das Ideias. Aí, a facilidade de acreditar não encontra qualquer resistência do real e o pensamento a crédito floresce ainda mais do que no curso comum dos negócios humanos, onde, de resto, já é o pão nosso de cada dia. As grandes causas mobilizam inteiramente o espírito e a logomaquia adquire imaginariamente as proporções cósmicas de uma gigantomaquia, traduzida numa luta sem quartel entre o Bem e o Mal, em que os participantes, para retomar uma imagem de Locke, não conseguem ver nada para lá do fumo das suas próprias chaminés.

Entramos no reino do tudo ou nada. Para quem tudo vê como um eterno combate de princípios, o compromisso encontra-se, por definição, excluído. O que acarreta, Raymond Aron lembrou-o há muito em O ópio dos intelectuais, que conte apenas o que se vê como uma libertação ideal e que qualquer libertação real seja liminarmente recusada como ilusória. O problema reside no simples facto de a libertação ideal – absoluta, total, sem resto, revolucionária – ser comprovadamente impossível, e a libertação real – parcial e reformista – ser a única possível. E reside igualmente no prestígio de que goza, mesmo nas mais pacatas e insuspeitas cabeças, a ideia de uma transformação revolucionária da realidade. Não creio que se possa deduzir sem mais o totalitarismo do marxismo – ou, já agora, de Rousseau, ou de qualquer filosofia que mereça esse nome da história ou da sociedade -, mas a verdade é que Marx, ao procurar fornecer uma ossatura teórica e “científica” ao mito da Revolução, contribuiu decisivamente para tudo se ver a partir da radical oposição do tudo e do nada e para o militante desprezo pelos vários reformismos.

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Mas o desprezo pelo particular e pelo concreto não precisa de se mostrar numa sua encarnação tão radical. Pode perfeitamente limitar-se a aspectos mais banais, que tendem no entanto a mergulhar a sociedade num sentimento quase esquizofrénico de irrealidade. Quando, por exemplo, num país em que a saúde e os transportes públicos se degradam muito visivelmente dia após dia e a mais elementar exigência burocrática se transforma num indescritível tormento para os cidadãos, se celebram com pompa e circunstância modernidades espúrias como a Web Summit e coisas afins, é o tal desprezo que está em acção. António Costa, tal como José Sócrates, não acredita no mito da Revolução e da libertação ideal, por muito que aqui e ali a conveniência o possa obrigar a um ou outro piscar de olhos nessa direcção, mas, tal como José Sócrates no seu tempo, que foi também o tempo dele, não nos esqueçamos, é dotado de uma extraordinária facilidade em voar do plano da realidade para o plano do ideal, onde não é preciso, nem convém, olhar para o baixo mundo empírico. No mundo ideal, entre outras coisas, a austeridade acabou. Que importa que no mundo empírico os seus efeitos se sintam cada vez mais dolorosamente na vida das pessoas?

Há sem dúvida quem encontre virtudes várias nesta esquizofrenia organizada. É no entanto permissível ver nela um sinal maior da corrupção da vida política na nossa sociedade. Uma corrupção que velozmente degrada o que ainda restava de confiança dos cidadãos na sua classe política. Como se o mundo dos políticos não fosse o mesmo que o nosso. António Costa arrisca-se, qualquer que seja a sua popularidade presente, a tornar-se num dos mais nocivos primeiros-ministros da nossa história recente. A não ser, é claro, que a vida na irrealidade seja dotada de misteriosas virtudes que escapam ao comum dos mortais. Dito de outra maneira: a não ser que o desprezo pelo concreto seja a garantia da nossa felicidade colectiva.

PS. Sem nada (felizmente) a ver com isto. Ando a ler uma história da música no século XX, já com uns anos (2007), da autoria de AlexRoss, jornalista da NewYorker: TheRest is Noise. Listening to theTwentiethCentury. Já li várias histórias da música do século XX, como os volumes de Richard Taruskin ou de NicholasCook, mas nunca nenhuma me tinha feito tão literalmente ouvir o século passado. Não há uma só página onde não se aprenda algo de significativo. Há vezes em que o entusiasmo deve mesmo ser partilhado.