A atmosfera é irrespirável. Os seus miasmas atingem-nos diariamente. Ria quem usar máscaras, chore quem não as tiver, fuja quem puder. O PS de Costa no Governo tomou conta do Estado. Está à vista de todos, não é preciso frequentar umas quantas aulas de um qualquer obscuro curso de Ciência Política para a coisa ser óbvia. Faz o que quer e deixa os seus fazerem o que querem, desde que tal não o prejudique.

Decide comprar e vender a TAP – uma entidade que é um absurdo simbólico, há muito, de uma fatídica saloiice – porque lhe deu na gana, torrando pelo caminho 3.200 milhões de euros dos nossos impostos. Explicações aos portugueses? Nenhumas. Os casos de nepotismo, inspirados na prática de reuniões familiares no Conselho de Ministros e arredores – pais e filhos, maridos e mulheres, irmãos e irmãs –, sucedem-se. Com abrangência, como se diz: namorados e namoradas também entram na fila.

A corrupção, tendo aquela gente por inspiração e mentora, alarga-se. Há afinidades electivas para todos os gostos. O semelhante atrai o semelhante. Cada investigação jornalística descobre infalivelmente indivíduos cujo único desígnio é tratar da vidinha no centro e na periferia do poder a expensas de uma sociedade inerme. Pobres diabos sem ideias ou convicções algumas falam dos dinheiros da Europa para entreter a ralé. António Costa dedica-se presentemente a uma tournée pelo país destinada a essa conversa. E, nessa tournée, aparece na televisão sorridente como um fantasma sem nada por dentro do tradicional lençol branco. Nada. É o nada, a tender para o gordo, em passeio.

A coisa, o PS, mais parece uma associação de malfeitores na qual ainda sobrevivem, quais dissidentes russos, algumas criaturas honestas e inteligentes que são do melhor que o país tem. Para disfarçar o que salta aos olhos de toda a gente, Costa inventou um absurdo inquérito de 36 perguntas que supostamente serviria para filtrar a alegre colecção de meliantes que se supõem cobiçar um lugar no Governo. Como tudo depende do seu superior juízo, não vai filtrar nada, já que ele, por sistema, ignora o que se passa com quem consigo colabora, desencadeando um “mecanismo” – ou um “circuito” – no qual toda essa gente desconhece, por sua vez, as actividades de quem escolhe para trabalhar no seu gabinete. Ninguém nunca sabe nada de nada. É o Governo dos três macaquinhos. Vive-se na mais sistemática opacidade, que nada tem de acidental e que é, para utilizar uma das palavras que o primeiro-ministro muito usa, desprezando o seu significado, estrutural.

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Tudo isto entristece um ministro que parece habitar noutra galáxia e se lamenta por viver num país em que as pessoas suspeitam impudicamente da honestidade dos políticos. Espíritos analíticos que se solidarizam com o Governo vêem nessas suspeitas o sinal claro de um ascenso do populismo e descobrem, quais príncipes Harry do comentário político, reais e palacianas fontes da conjura. Não lhes ocorre que o tal populismo – que existe, de facto, para nossa desgraça (mas não convém exagerar a sua importância) – é a reacção directa àquilo que se poderia chamar “poderismo”.

O poderismo é a redução da política a todos os artifícios necessários à perpetuação no poder, agregando gente que tem por fim exclusivo o gozo de certos e determinados privilégios. Tal redução corresponde à destruição da amizade política que deve guiar as relações dos governantes com os governados e que é a condição indispensável para um mínimo de concórdia nas relações políticas. Em vez dessa boa amizade, temos a pior das amizades, a amizade de uma facção regida pela utilidade pessoal.

Como é comum nesse tipo de amizades, a relação é de desigualdade. Uns são amigos dos outros sob a forma da relação do inferior com o superior. Não há igualdade na amizade de facção: há um interesse comum à facção como um todo, mas dentro da facção reina a desigualdade, pela qual toda a gente é servil para com o chefe mais próximo e todos, colectivamente, são subservientes para com o chefe máximo. Subservientes em benefício próprio, é claro. E o benefício próprio suscita um número indefinido de amizades ditadas pela utilidade. Ninguém tem tantos amigos como o homem de facção. Ninguém tem tantos amigos interesseiros como o homem de facção. Ninguém tem tantos amigos prontos a traí-lo como o homem de facção. Ninguém gosta tanto de viver assim como o homem de facção.

A democracia tem a obrigação de investigar esta teia malsã de amizades, sob pena de dar lugar a um outro regime, o que convém evitar. Aristóteles, o grande teorizador da amizade política – a amizade, a philia, não é apenas uma relação entre os indivíduos: é aquilo que permite a existência de uma comunidade política – distinguiu três regimes puros – monarquia, aristocracia e timocracia – e três regimes que correspondem a desvios destes: tirania, oligarquia e democracia. É significativo que, considerando a monarquia o melhor regime puro (isto é, ideal) e a timocracia o pior, julgue ao mesmo tempo que a democracia, a variante degradada do pior dos regimes puros, é o menos mau dos regimes derivados. Se considerarmos que todos os regimes puros não são senão regimes ideais, condenados desde o princípio a uma degradação inevitável, não é um pequeno elogio da democracia, que dá alguma substância ao quase paradoxo de Churchill que toda a gente gosta de repetir. É esse regime que o PS, sob a batuta de António Costa, anda a fazer todos os esforços por destruir.

Dada a obsolescência pré-programada deste Governo, seria bom que, por necessidade da sobrevivência da democracia, o PSD de Luís Montenegro começasse desde já a federar as várias direitas, mesmo as mais rebarbativas, com vista à governação de Portugal. O PSD deve mandar às urtigas, nesta matéria, a opinião do PS. A situação presente é intolerável. É como viver entre cadáveres. Haverá certamente muitos conflitos que resultarão dessa nova governação, mas o conflito, à sua maneira, integra também a concórdia. Em todo o caso, a actividade que essa governação deverá trazer será de longe preferível à terrível inactividade que a facção do PS de Costa trouxe ao país em benefício do seu poderismo.

PS. É sempre um prazer ver na CNN o major-general Agostinho Costa, aquele senhor muito obsequioso que trata os jornalistas por “sêdutora” e “sêdutor” e, com um aparente nervosismo que é todo um programa de comunicação, acaba sempre por constatar que todo o mal que acontece aos ucranianos é, azar dos azares, invariavelmente culpa dos próprios – o que ele, de resto, muito lamenta. É espantosa a variedade de meios através dos quais a parcialidade e a mentira encontra caminhos para se exprimir.