Esta semana celebrou-se, mais uma vez, o aniversário do pronunciamento militar de 25 de Abril de 1974 que pôs fim ao autoritarismo de Salazar e Caetano. O legado da transição democrática tem vindo a mudar ao longo dos últimos anos. No virar do século, muitos vaticinavam que o 25 de Abril corria o risco de, a prazo, tornar-se um novo 5 de Outubro, recordado apenas por meia dúzia de fiéis, enquanto a maior parte do povo gozava indolentemente do merecido feriado. Os últimos anos mudaram tudo isto. Na última década, especialmente entre as gerações mais novas, o 25 de Abril ganhou importância enquanto símbolo político que cada um preenche com os sonhos que tem para o país. O desfile da Avenida da Liberdade tornou-se um movimento genuinamente popular, com gente de todas as cores políticas, no qual as pessoas se revêm e uma celebração do Portugal democrático que colectivamente construímos.
Ao contrário do que dizem Chega e PCP, e em menor grau Bloco de Esquerda, a democracia em Portugal é um sucesso absolutamente extraordinário. Senão vejamos. No último meio século, Portugal conseguiu aumentar os níveis de educação de forma absolutamente exponencial, tornou-se num dos países do mundo com menor taxa de mortalidade infantil e, ao mesmo tempo, com maior esperança média de vida. Somos hoje um país Europeu e é aos nossos amigos Europeus que devemos praticamente tudo aquilo que hoje somos.
Infelizmente, os partidos dos extremos continuam a não perceber que a democracia é “apenas” um sistema político que serve para agregar preferências e fazer decisões colectivas. No fundo, é um conjunto de regras que permitem que sociedades com preferências divergentes consigam conviver pacificamente, elegendo e removendo os políticos à medida que avaliam o seu desempenho político. Ao contrário do que diz o PCP, a democracia está plenamente cumprida e a permanência de desigualdades profundas em Portugal não belisca a democracia. Um país pode ser desigual em democracia ou em ditadura. Em democracia, os cidadãos têm possibilidade não apenas de queixar-se sobre essas desigualdades, mas também de utilizar o voto para tentar mudar esse estado de coisas. Ao contrário do que diz André Ventura, utilizando, de resto, um plural majestático entre o patético e o risível, o regime não falhou, sendo preciso um pedido de desculpa a “a polícias e magistrados, empresários e famílias”. Os extremos, de facto, tocam-se.
Poderíamos ter feito melhor nos últimos 50 anos? Quem me lê habitualmente, sabe bem que acho que sim. Com os fundos Europeus que foram colocados à nossa disposição, as elites políticas tinham obrigação de ter feito muitíssimo melhor. É certo que o nível de exigência dos cidadãos é muitíssimo baixo, como vimos nas eleições de Janeiro passado. Num país em queda contínua e acelerada, os cidadãos escolheram utilizar as suas prerrogativas democráticas para premiar o incumbente, em vez de o punirem. Apesar de discordar profundamente, a democracia que Abril inaugurou exige que tenha total respeito por essa escolha.
A comemoração dos 50 anos da transição democrática serão um bom momento para avaliar a longa caminhada de Portugal no último meio século, especialmente sob o ponto de vista histórico. A nomeação de Maria Inácia Rezola, apesar de estar sob a tutela incompreensível do Ministro da Cultura, é um bom sinal. Apesar de não ser uma académica de renome internacional, ao contrário de comissários passados como António Costa Pinto ou Miguel Poiares Maduro, Inácia Rezola é séria e fará um bom lugar. Para além das comemorações folclóricas que estas datas redondas sempre exigem, independentemente de quem seja o comissário, espero que Inácia Rezola utilize o cargo para promover iniciativas pluralistas sobre a transição para a democracia em Portugal. Seria ainda da maior importância que utilizasse o cargo para promover esforços junto de Costa e Marcelo para que os arquivos da PIDE, que o PCP fez chegar a Moscovo em 1974, receando, talvez, que a verdade mostrasse que a resistência não havia sido assim tão heróica, sejam rapidamente devolvidos a Portugal. Se conseguir que a memória histórica do país esteja mais completa a 25 de Abril de 2024, Inácia Rezola terá prestado um grande serviço ao país.