Sempre que algum católico faz referência crítica aos seus heterodoxos irmãos na fé, há quem considere que falta à caridade ou, como agora se diz, é pouco inclusivo, senão mesmo fundamentalista e fanático. À conta desses piropos, também se lhe chama fariseu, à laia de insulto. Embora pouco simpático, este epíteto é verdadeiro em relação aos católicos que, sabendo-se pecadores, se esforçam por ser bons cristãos. Nós, os católicos que procuramos ser ortodoxos e coerentes, somos, de facto, os novos fariseus!
Dos fariseus contemporâneos de Jesus de Nazaré só nos chegou a visão negativa que deles dá o Evangelho e que fez, desta denominação, um sinónimo de duplicidade e hipocrisia. Curiosamente, não obstante as violentas invectivas de Jesus de Nazaré contra algumas práticas farisaicas, mas não contra os fariseus, não consta que ninguém o tenha acusado de faltar à caridade, ou de ser pouco inclusivo, fundamentalista ou fanático.
Não obstante essas críticas, esses discursos de Jesus implicam um certo reconhecimento da virtude dos fariseus. Ao lhes censurar o modo como rezavam, se sacrificavam e praticavam obras de caridade, Cristo reconhece que, ainda que imperfeitamente, rezavam, se sacrificavam e procuravam viver a caridade, ao invés dos judeus não praticantes, ou não crentes, que não rezavam, não se sacrificavam, nem praticavam a caridade. Por outro lado, se Jesus de Nazaré não reprovou publicamente os ateus, agnósticos e crentes de outras religiões, não foi porque aprovasse o seu ateísmo, agnosticismo ou crença não cristã, mas porque, como confidenciou à cananeia, só foi “enviado às ovelhas desgarradas de Israel” (Mt 15, 24).
Não obstante as duras críticas de Jesus aos fariseus, que certamente não favoreceram a sua imagem histórica, os saduceus, que passaram incólumes à posteridade, não eram melhores. Com efeito, não só eram menos piedosos do que os fariseus, como pouco esclarecidos, “porque os saduceus dizem que não há ressurreição, nem anjo, nem espírito; ao passo que os fariseus reconhecem ambas as coisas” (At 23, 8).
Pode-se, portanto, considerar, sem ofensa, que os antigos saduceus são hoje representados pelos que, como os ateus e os agnósticos, não acreditam em anjos e demónios, nem na ressurreição ou na eternidade. Pelo contrário, os que crêem nos espíritos e na vida eterna são, mutatis mutandis, os novos fariseus. Estes últimos eram, sem sombra de dúvida, os mais observantes dos israelitas, os que tinham melhor formação teológica, os mais cumpridores da Lei, os melhores conhecedores da doutrina dos profetas, os mais piedosos dos crentes, os mais sacrificados dos membros do povo eleito. Ou seja, o que hoje são os católicos praticantes, em relação aos não-crentes e aos crentes não praticantes, assim eram os fariseus de há dois mil anos.
Apesar da má nota dos fariseus, os saduceus foram os que mais perseguiram os primeiros cristãos. Por exemplo, quando Pedro e João “falavam ao povo, sobrevieram os sacerdotes, o oficial do templo e os saduceus, descontentes de que eles ensinassem o povo e anunciassem, na pessoa de Jesus, a ressurreição dos mortos. Lançaram mão deles e meteram-nos na prisão” (At 4, 1-3). Mais adiante diz-se que, “levantando-se o príncipe dos sacerdotes e todos os do seu partido, que é a seita dos saduceus, encheram-se de inveja, deitaram as mãos sobre os Apóstolos e meteram-nos na cadeia pública” (At 5, 17-18). Ao contrário dos fariseus, de que só alguns se opunham a Cristo, porque outros o seguiam, toda “a seita dos saduceus” era contra Jesus de Nazaré.
Quando o Sumo Sacerdote julga os Apóstolos, quem os defende é “um homem do Sinédrio, um fariseu chamado Gamaliel, doutor da Lei, venerado por todo o povo” (At 5, 34). É este fariseu que aconselha os seus pares a não perseguirem os cristãos, “porque, se esta iniciativa – ou esta obra – vem dos homens, há-de arruinar-se. Mas, se vem de Deus, não podereis arruiná-la, e oxalá não vos acheis a combater contra Deus!” (At 5, 38-39).
Esta intervenção de Gamaliel remete para o mais importante evangelizador cristão: São Paulo. Quando ainda não se tinha convertido ao Cristianismo, foi um zeloso judeu, discípulo daquele doutor da Lei, como o próprio afirmou: “‘Irmãos e pais, ouvi a defesa que vou agora apresentar-vos de mim mesmo!’ […]. Ele prosseguiu: ‘Eu sou judeu, nascido em Tarso da Cilícia; mas fui educado nesta cidade, instruído aos pés de Gamaliel em todo o rigor da Lei de nossos pais e cheio de zelo por Deus, como vós todos o sois hoje. Persegui de morte esta Via, algemando e entregando à prisão homens e mulheres, como precisamente o podem atestar o Sumo Sacerdote e todo o Senado” (At 22, 1-5).
São Paulo não só foi discípulo de um dos principais fariseus, mas também ele o foi, como aliás seus pais: “Sabendo Paulo que uma parte do Sinédrio era de saduceus e outra de fariseus, exclamou em alta voz, diante deles: ‘Irmãos, eu sou fariseu, filho de fariseus, e sou julgado por causa da esperança na ressurreição dos mortos.’ Quando disse isto, estabeleceu-se uma grande discussão entre os fariseus e os saduceus, e dividiu-se a assembleia” (At 23, 6-7). Note-se que Paulo não diz que foi fariseu, mas que o é!
Quando o judaísmo de Saulo foi posto em causa, o Apóstolo dos gentios não deixou por mãos alheias os seus méritos na fé de Israel: “Se algum outro pode confiar na carne, muito mais eu, circuncidado no oitavo dia, da geração de Israel, da tribo de Benjamim, hebreu de pais hebreus, segundo a Lei, fariseu, quanto ao zelo, perseguidor da Igreja, quanto à justiça da Lei, irrepreensível no meu proceder” (Fl 3, 4-6). Seguramente não era o único fariseu entre os primeiros cristãos, pois “a palavra do Senhor ia-se espalhando cada vez mais, multiplicava-se muito o número dos discípulos em Jerusalém, e também uma grande multidão de sacerdotes aderia à fé” (At 6, 7), dos quais bastantes seriam fariseus, até porque era menos provável a conversão dos saduceus.
Quer isto dizer, então, que o farisaísmo é bom e que já não fazem sentido as críticas de Jesus aos fariseus?! Claro que não, até porque desses fariseus sempre os houve e há e, por isso, as palavras de Cristo são de grande actualidade, também em relação aos crentes contemporâneos, nomeadamente católicos. Mas, se eles foram então censurados pelo modo como interpretavam a Lei, se relacionavam com Deus e com o seu próximo, rezavam e se sacrificavam, é óbvio que essas críticas só são pertinentes em relação aos crentes, que são também os únicos que procuram cumprir a Lei, rezar e oferecer sacrifícios. Portanto, neste sentido, nós, os católicos, somos os novos fariseus.
Embora reconheça que o termo não é simpático e tema que a intenção de quem de tal me acusa não seja a melhor, muito me alegro quando me chamam fariseu (cf. At 5, 41). Muito pior é, decerto, ser alguém que, embora configurado com Cristo pelos sacramentos do Baptismo, da Confirmação e até da Ordem, abdicou de ser “sinal de contradição” (Lc 2, 34), para servir o príncipe deste mundo. Antes fariseu, como São Paulo, também ele perseguido e caluniado pelos homens politicamente correctos do seu tempo. Ou como Nicodemos, “um homem da seita dos fariseus” (Jo 3, 1) e José de Arimateia, “membro ilustre do Sinédrio” (Mc 15, 43), que corajosamente exigiram a Pilatos o corpo morto de Jesus (cf. Jo 38-40).
Portanto, fariseu sim, mas como Paulo, Nicodemos e José de Arimateia. Apesar da má-fama deste bom farisaísmo, pior farisaísmo é o dos que, julgando-se superiores aos pecadores que lutam por ser melhores, os acusam de ser fariseus…