Não é frequente que questões de política externa sejam notícia de abertura dos telejornais. Foi o que aconteceu na terça-feira passada, quando o Ministério dos Negócios Estrangeiros colocou Portugal numa situação diplomática delicada ao adiar uma posição relativamente ao conflito Reino Unido-Rússia. Como muito já se escreveu sobre este assunto, resta-me acrescentar umas notas:

1. As posições externas de Vladimir Putin. A invasão e anexação da Crimeia, em 2014, foi o momento de viragem nas relações da Rússia com os estados da União Europeia e da NATO. Moscovo passou a assumir, ainda mais abertamente, que tinha uma política de inimizade com os vizinhos ocidentais. Desde caíram todos os disfarces: Putin foi visto a apertar a mão a líderes extremistas, a usar formas subversivas para influenciar as eleições em diversos países a favor dos candidatos que lhe convinham, e a usar o que a Economist já chamou “retórica antiocidental estridente”. Já este ano, o presidente russo congratulou-se pelo seu país ter desenvolvido novo armamento nuclear ofensivo.

2. A forma como o presidente russo perceciona a Europa e a NATO. Como inimigos. Por muitas voltas que se dê, a Rússia tem vindo a enfatizar a sua animosidade em relação às duas organizações. A política externa de Moscovo tem-se organizado à volta da ideia tão construída por Moscovo quanto fictícia para os países membros de que a NATO é uma ameaça vital à sua existência. Se quisermos ser justos, a Aliança Atlântica avançou as suas forças militares para perto das fronteiras da “esfera de influência” russa (como consequência da invasão da Crimeia). E há divergências de fundo relativamente à forma como se deve organizar o mundo e o sistema internacional, especialmente no que respeita aos valores. Mas não cabe na cabeça de ninguém ensaiar qualquer movimento que ponha em risco a integridade territorial russa. Na verdade, é desproporcional a forma negativa como Moscovo vê a União Europeia e a NATO e a forma, muitas vezes complacente, como a União Europa e a NATO vêem a Rússia.

3. O comportamento internacional de Moscovo. Para além do que se tem passado no espaço euro-atlântico, é difícil ignorar o crescente autoritarismo interno de Vladimir Putin, bem como o seu papel na guerra civil da Síria. Os estados europeus, bem como outros estados ocidentais, têm tolerado vários tipos de intromissão russa nas suas políticas, na tentativa de apaziguar conflitos económicos e diplomáticos. O caso Skripal, que tem levado, e bem, os estados ocidentais a solidarizarem-se com Theresa May, é um limite que mais tarde ou mais cedo teria de ser imposto. A Rússia não pode pisar o risco das regras da convivência entre os estados impunemente sempre que lhe apetecer, sob pena de dominar a política ocidental e dispor das nossas soberanias. Há tantas queixas relativamente à partilha das soberanias nacionais relativamente ao Projeto Europeu – que foram cedidas em negociação política transparente – que não se compreende como não há indignação relativamente à intromissão russa não permitida pelos estados e proibida pelo direito internacional público (que Putin evoca frequentemente em sua defesa, mas não hesita em violar sempre que lhe é conveniente).

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4. O alinhamento das democracias ocidentais. O movimento de solidarização com o Reino Unido e a expulsão de 60 diplomatas russos pelos Estados Unidos seria também, desejavelmente, um ponto de viragem naquilo a que convencionámos chamar “Ocidente”. Pela primeira vez em algum tempo há um movimento comum de solidarização à volta de um mesmo princípio. Se repararmos, os estados que se juntaram neste protesto diplomático aos abusos russos são democracias. Foi muito importante perceber que os estados ocidentais ainda estão dispostos a unir-se pela manutenção do seu modo de vida. Mais, é nestes momentos que se avaliam, nas chancelarias do mundo, a força e resiliência das alianças permanentes. Os estados ocidentais passaram a prova.

5. O simbolismo diplomático. As expulsões de diplomatas em escala significativa vieram do Reino Unido, dos Estados Unidos e da Ucrânia. Os outros países procederam a expulsões simbólicas. Em diplomacia isto significa a sinalização sobre de que lado da barricada se está. E se muitos elogiaram a posição de ponderação do governo no primeiro momento, agora é quase impossível não ver a política portuguesa como forma de autoisolamento – a meu ver, do lado errado. E se se pode temer represálias russas, gostaria de lembrar que também se paga um preço (talvez bem mais alto) por abandonar os aliados.

6. Portugal. Entre a Rússia e os países ocidentais, não vejo como possa haver hesitações. E por muitas voltas que se dê (leia-se, mesmo que o governo mude de posição), deste carimbo de hesitação, falta de firmeza, ou escolha diplomática por defeito, Lisboa já não se livra.