Não sei se foi mas pareceu que foi. Pareceu que ao fim de três dias da ação mole e do gesto hesitante das instituições políticas europeias e norte americanas face a Putin, a resposta tonitruante começou pelos “leigos”. Primeiro foi a inesperada capacidade de heroicidade da resistência ucraniana, uma espécie de indiscutibilidade que espantou o mundo. (Voluntariamente pertencentes a sociedades instaladas, estranhamos qualquer forma de heroicidade); depois houve as pessoas: esses “leigos”, os anónimos, a rua, os povos. Isso a que vulgarmente se chama opinião publica e que encheu, de lés a lés, os écrans do planeta, numa veemente, espontânea condenação do monstro. Porventura também ela um ímpeto inesperado que se auto-organizou numa veloz cadeia contra a brutalidade. Um sobressalto que ditaria outros. (ah, afinal o mundo não estava perdido?)

2 E houve a política, bem entendido. Posso ter-me comovido com a dimensão global da rejeição popular a Putin, mas não distraído: à política o que é da política. Antes do mais a unidade sem fissura entre os estados membros da UE, um extraordinário fator político no qual não se acreditaria meia hora antes. (não nos iludamos, porém: não fora a bravura de aço dos ucranianos e a sua coragem sem freio, amparadas na extraordinária figura de Zelensky e teria havido essa coesão que agora nos parece segura?)

Mas sim, seja: dissiparam-se as idiossincrasias e os humores políticos  a que 27 países e os seus chefes nos têm sobejamente habituado e ergueu-se uma vontade comum, capaz de uma resposta política comum. A inexcedível gravidade e complexidade da invasão da Ucrânia pelas tropas russas não era para menos, mas era preciso fazê-lo e a União Europeia fê-lo. Tardou mas arrecadou. Agiu a uma só voz, uma só vontade política, uma só resposta, no muito eloquente endurecimento das sanções.

Tal concertação veio mais tarde do que devia e teria sido preciso, mas veio. Veio também graças ao indispensável — e oh quão também ele inesperado — alicerce que foi a histórica mudança geo-estratégica da Alemanha. Não se sabe se Olaf Scholz inquietou esse  — só aparentemente? — inassustável Putin com o estarrecedor discurso onde anunciou como a Alemanha pensará daqui em diante as suas relações externas. Sabe-se que surpreendeu a própria União Europeia, o ocidente e o mundo com um novo posicionamento face à Russia e com tudo o que isso implicará de diferente por um lado, de novo por outro. Não foi pouco e poderá ter sido salvífico.

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Seguiram-se outros gestos politicamente muitíssimo relevantes no atual desconcerto do mundo: a reação da Turquia — segundo poderio militar no seio da Nato e comandada por um líder do qual o ocidente desconfia e que o mundo teme; a atenção prudente da China (com os olhos em Tawain);  a “colaboração” da neutral Suíça também ela promotora de sanções; a resposta do Japão, da Austrália, de alguma África. E veja-se — e ouça-se —  a propósito do continente africano o discurso do embaixador do Quénia na ONU há dois dias, para citar alguns dos que se juntaram a esta espécie de inorgânica task-force — política, militar, diplomática, económica, monetária. Para a qual não pode ter deixado de contribuir a arma de destruição maciça enviada a Putin pelo embaixador da Ucrânia no mesmo dia e na mesma ONU, através da parte final do seu extraordinário discurso. Um dia histórico: haverá melhor certificado da excecionalidade deste momento global que a própria excecionalidade da convocação desta Assembleia Geral das Nações Unidas? Outro sobressalto, mais um ciclone.

3Putin, que acha a Ucrânia uma ficção” — a Ucrânia é dele, tem de voltar ao redil — deve ser o mais espantado com a capacidade de resistência que ela tem exibido ao mundo, a si própria, mas sobretudo à Rússia e especialmente a ele, Putin. E eis-nos no ponto mais frágil da argumentação do chefe russo:  a Ucrânia demonstrou que não é uma ficção justamente pela forma como se tem defendido. Só se defende assim o que é nosso. Muito nosso.

4Os ventos também sopraram sobre mentes e gentes, convocando-as para a dádiva de toda a ordem na escala da necessidade humana. Tem havido acolhimento (imediato), disponibilidade, bens, meios, dinheiro, tempo. O tempo livre e não livre de cada um, os meios ou a falta deles de todos. Por entre a barbárie e o infortúnio, no limite do horror, a natureza humana lembra-nos que é capaz de produzir o bem e de o multiplicar dentro e fora das suas portas, nas piores condições.

É também no limite do horror que a dignidade se pode tornar sinal e luz: a dignidade que vê nos rostos ucranianos, nas praças, nas filas, nos escombros, nos comboios. Nas longuíssimas esperas por algo que não seja aquilo: um país devastado pela irracionalidade da demência e da violência. Uma pátria remota e arredada da confortável bolha ocidental onde nos repimpamos de liberdade, relativismo, demissão, consumo e uma considerável dose de irresponsabilidade. Talvez a bolha agora se transforme em algo de menos deprimente. Que é outra maneira de falarmos de seriedade.

5 À hora a que escrevo, terça-feira de de manhã, todos temem o pior: estamos a falar de Putin. O pior é a invasão e depois ocupação de Kiev que deixará inevitavelmente expostas a heroica mas desamparada fragilidade militar e numérica de uns – os brutalmente invadidos; e a violência bárbara dos ocupantes. Conhecemos o guião: sirenes, tanques, invasão, ocupação, mortos, feridos, rendição, prisão, mais mortes. Desaparecimentos. Horas depois, o silêncio e, sobre ele, a bota de um fantoche governo. Talvez também rezar. Sim, porque não?