A coreografia da sessão de apresentação do Plano de Recuperação e Resiliência incluiu, no vistoso edifício da Fundação Champalimaud, uma troca de sorrisos entre António Costa e Ursula Von der Leyen com a foz do Tejo ao fundo. Minutos depois o primeiro-ministro explicava como iria ser maravilhoso os habitantes de Bragança poderem viajar de TGV (espanhol) para Madrid graças a uma nova estrada que quer construir com os dinheiros que vão chegar da Europa.
Não discuto os benefícios para o nordeste da nova estrada [1], mas interrogo-me sobre se não se perdeu de vez a noção do ridículo. A praia onde agora se ergue o Centro Champalimaud já conheceu momentos de grandeza, quando dali partiram as naus de Gama ou de Cabral, mas também de vergonha, quando ali atabalhoadamente embarcou uma família real em fuga para o Brasil, mas ter escolhido aquele local para apresentar o mais modesto, o menos ambicioso, o mais limitado dos planos “de resiliência” só mesmo de quem coloca no mesmo nível a abertura ao mundo e uns quilómetros de via rápida em Bragança.
Tem sido com tristeza que, semana após semana, vejo desmantelar, de forma metódica, qualquer hipótese deste plano, e dos fundos que lhe estão associados, serem aquilo que muito esperavam que pudessem ser: a nossa “última oportunidade”.
A nossa última oportunidade para sacudir o torpor em que mergulhámos há duas décadas, duas malditas décadas sem crescimento. A nossa última oportunidade para realizar reformas verdadeiramente estruturantes, aquelas que só se fazem com dinheiro de forma a vencer resistências. A nossa última oportunidade para evitar continuarmos a escorregar cada vez mais para a cauda da Europa.
Mas não. A novidade que António Costa nos trouxe por estes dias é que nem sequer vai querer utilizar todo o dinheiro que terá disponível. Só o que vier a fundo perdido. Os empréstimos para já não. Estamos muito endividados, argumenta com razão, mas a questão não é essa: é que aquilo que o primeiro-ministro nos apresentou não foi uma visão do futuro, foi, como tantos já disseram e escreveram, uma lista de compras. Uma lista de compras com uma particularidade: só compraremos os que estiver à venda nas gavetas da União Europeia, a liberdade de escolha será pequena.
Pior. Quando olhamos para aquilo que se anuncia, percebe-se que mais do pensar no futuro, trata-se sobretudo de lamber as feridas do passado. A esmagadora maioria do dinheiro que virá a fundo perdido da União Europeia irá para o Estado. Será porque o guru do primeiro-ministro, que trabalhou toda a vida no sector privado, acredita genuinamente que “não é o mercado que nos vai salvar, é o Estado“? Duvido. O que António Costa Silva sabe é que o Estado tem há muitos anos um défice de investimento enorme e que não terá tão cedo oportunidade de abocanhar tanto dinheiro. É agora ou nunca.
Esta semana circulou nas redes sociais um gráfico interessante, partilhado por um economista do Institute for Comprehensive Analysis of the Economy da Universidade de Linz em que ele se mostrava surpreendido pela queda do investimento público em Portugal durante a última legislatura:
Quem vive em Portugal conhece bem esta realidade e acho que não exagerarei muito se estimar em 4 a 5 mil milhões de euros aquilo que Mário Centeno retirou ao investimento público para compensar o que gastou em medidas como as 35 horas e outras “reposições” negociadas com a geringonça.
Por outras palavras: um terço do dinheiro que aí vem vai servir para tapar o défice de investimento público dos últimos anos, pelo que não surpreende que o plano seja tão ”estatocêntrico”, como acertadamente lhe chamou Paulo Rangel. Na verdade ele vai mais depressa tratar de salvar o Estado do que de salvar o país, e isso percebe-se bem quando lemos as medidas que já são conhecidas – ou melhor, quando nos vão dando a conhecer a parte da “lista de compras” que foi tendo luz verde para ser do conhecimento público.
Lê-se o que foi “passado” ao Público e depois repetido na apresentação do Centro Champalimaud e é tudo tão pequenino, tão vistas curtas – “duas novas pontes para Espanha”; “meios aéreos próprios”; “meios complementares de diagnóstico nos centros de saúde”; “habitação condigna para 26 mil famílias”; eléctrico rápido em Loures e autocarro autónomo no Porto”; “onze novas estações de tratamentos de lamas”; “todos os serviços públicos num único portal” – que chega a duvidar-se se estamos a ler o plano para uma década ou o programa de candidatura a uma câmara municipal. Sobretudo percebe-se como se perdeu ambição e, sobretudo, como se perdeu perspectiva.
Há três décadas, no tempo em que em vez do engenheiro-poeta que alinhavou uma estratégia em algumas semanas, houve uma discussão longa e estruturada sobre uma estratégia que contou com o apoio de especialistas internacionais – de que resultou o famoso “relatório Porter” –, discutia-se se Portugal devia continuar a apostar nos sectores tradicionais (têxteis, calçado), se devia virar-se para a indústria automóvel, o que aconteceria na agricultura e ao nosso vinho, falava-se do futuro dos moldes de plástico e, claro, sonhava-se com tecnologia. Isto entre muitas outras coisas. No fundo discutia-se a economia, procurava perceber-se quais os melhores caminhos para as nossas empresas.
A estratégia proposta por Michael Porter durou poucos anos, porque entretanto mudou o Governo e a maioria do PSD para o PS, mas o interessante é que ainda se fala dela e sobretudo aquilo que na altura mais se contestou – então vamos continuar a ter têxteis e calçado? – revelou-se uma aposta acertada.
António Costa Silva, quando começou a escrever e a falar, ainda incorporou algumas ideias que tinham algumas coisa a ver com economia e com empresas, mas isso foi no princípio. Tudo parece entretanto ter desaparecido nesta “estatização” absoluta do plano, nesta visão totalmente dirigista de um governo que na realidade dificilmente poderia produzir algo de diferente: por um lado, 90% dos ministros e secretários de Estado nunca na vida fizeram outra coisa senão trabalhar no Estado; por outro lado, em todos os Ministérios há uma longa lista de encomendas atrasadas, tudo aquilo que Mário Centeno não foi deixando fazer nos últimos cinco anos, pelo que a fome de “obra” é grande.
Ora sucede que temos de ter noção clara dos problemas em vez de nos embebedarmos com palavras. Como foi possível que tenham levado Ursula Von der Leyen a dizer que “Portugal já é líder digital em muitas áreas” na mesma semana em que o nosso país desceu três lugares no ranking da competitividade digital e ocupa a 37.ª posição entre 63? E ter noção dos problemas é verificar que essa descida no ranking se deveu sobretudo a factores que têm a ver com as empresas, a um grande receio do fracasso e ao fraco uso de big data & analytics, ferramentas que só companhias com alguma dimensão por regra conseguem usar.
O que nos leva um estrangulamento que quase todos identificam mas que é totalmente ignorado nestes grandiosos planos: temos um défice de produtividade, e essa défice de produtividade é muito consequência de, como escrevia esta semana Vítor Bento aqui no Observador, termos uma “estrutura empresarial demasiado concentrada em microempresas, que absorvem 45% do emprego, mas que geram pouco mais de 20% do VAB, e cuja produtividade é cerca de 1/3 da média de todas as restantes – pequenas, médias e grandes”.
Porque é que temos esta estrutura do tecido empresarial? Que estímulos podem ser criados para a alterar? Que efeito teria isso na produtividade da economia? E na sua capacidade de se abrir ao exterior? Nenhuma estrada de Bragança do apeadeiro do TGV em Puebla de Sanabria responde a estas questões. Mas dar-lhes uma resposta era decisivo para saber se vamos mesmo estragar a última oportunidade, como tudo indica que vai acontecer.
Porque temos um Estado glutão e uma sociedade civil dependente e subserviente. Conhecendo a nossa história nos últimos séculos, digamos que não é novidade.
[1] Valeria mesmo assim discutir o que possa vir a suceder ao Parque Natural de Montesinho e à velha mas lindíssima estrada que hoje liga Bragança a Puebla de Sanabria, uma estrada que conheço muito bem e tem troços de grande beleza.
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