A última coisa que deve surpreender uma pessoa minimamente lida em história e familiarizada com o entendimento da sociedade partilhado por muitos dos seus contemporâneos é o desprezo muito comum pela democracia. Esse desprezo, mais espontâneo ou mais reactivo consoante os casos, esteve sempre aí aos olhos de toda a gente. No mais das vezes, ele exprime-se de uma forma difusa e, regra geral, inconsequente. Não convém, sob esta forma, atribuir-lhe muita importância: de uma certa maneira, ele é uma patologia da própria democracia, enquanto projecto sempre inacabado e essencialmente imperfeito. Noutros casos, porém, ele revela um entendimento consequente, teoricamente elaborado, da sociedade e desdobra-se num amor, que raras vezes ousa dizer o seu nome, pela tirania. Aqui, deve-se sem dúvida levá-lo a sério. Porque ele exprime um programa de sociedade que coloca radicalmente a democracia em causa. Não há aqui vestígio algum de amor pela liberdade, por mais que a palavra “liberdade” esteja muitas vezes na boca dessa gente.

Falo de “democracia” num sentido lato e convenientemente impreciso, como é sempre fatal nestas coisas, que são por essência insusceptíveis de definições rigorosas. E seria descabido, neste contexto, comparar as democracias contemporâneas ao projecto subjacente à Atenas do século V a.C., tal como simbolizado pela célebre oração fúnebre de Péricles em Tucídides. A democracia, no entendimento comum, não é exactamente, para usar uma linguagem bíblica, uma terra prometida, uma “terra de leite e mel”, mas a verdade é que há uma espécie de aliança com ela que caracteriza as sociedades mais livres que conhecemos.

No que respeita àqueles que a desprezam, deixo de lado os adeptos do desprezo inconsequente. Por uma razão simples: ele vem, em geral, do abismo de solidão em que vivem mergulhados muitos indivíduos e o desprezo exibe exactamente essa solidão excruciante. A solidão condu-los àquilo que normalmente se chama “egoísmo lógico”, uma vontade desmesurada e irrevisível de ter razão contra todos os outros. Um seu complemento quase fatal é a adopção, com graus de elaboração variados, de uma forma ou outra de teorias de conspiração, que lhes permitem o benefício narcísico de julgarem ver aquilo que ao comum passa desapercebido. Sociologicamente, é sem dúvida um fenómeno importante. Politicamente, duvido que o seja grandemente. É o desprezo consequente, aquele que vem armado de teorias da sociedade e da história, que é politicamente significativo. À sua maneira, também ele exprime um egoísmo lógico, mas trata-se de um egoísmo lógico vestido de uma linguagem que se pretende sofisticada e feita para ser transmitida nos lugares de saber e nos media. Há aqui também teoria da conspiração, mas em versão doutoral e universitária, ministrada como se de uma ciência se tratasse.

Esta última forma de egoísmo lógico que revela o ódio à democracia manifesta-se no discurso político corrente. Mas aparece magnificada em relação a certos e determinados objectos. A aversão à democracia israelita é sem dúvida um seu objecto preferencial. Mas a invasão russa da Ucrânia é aquele que presentemente suscita as suas manifestações mais radicais. Assim, para os seus adeptos, a verdadeira causa da guerra não é a Rússia de Putin, mas antes os Estados Unidos, o Ocidente e a Nato. Eis, aos olhos deste conspiracionismo, o invisível que tudo explica e que a todo o momento a ideologia ocidental nos quer encobrir.

Muita gente discute se o motor desta rejeição da democracia e da liberdade tem uma origem primeiramente negativa ou positiva. Dito de outra maneira: se aquilo que verdadeiramente a motiva é a detestação dos Estados Unidos e do Ocidente ou o puro amor pela força bruta e pela mentira incondicionada de que esta se serve para atingir os seus fins. Bom, é certo que nenhum dos factores é completamente isolável do outro. Mas é verosímil que seja o elemento por assim dizer positivo que represente a força dominante. A afirmação é, regra geral, prévia por relação à negação. O amor da força bruta – o amor da tirania – goza de uma certa precedência por relação à rejeição da liberdade. A força bruta e a mentira alucinada que a acompanha como justificação oferecem um excesso de sentido que satisfaz muitos espíritos. São uma pura afirmação liberta das condições limitativas da razoabilidade. No acto do seu exercício e na curiosa libertação que nos garantem face à obrigação do respeito pelos factos. Amar a tirania é, para o egoísmo lógico em geral – tanto o inconsequente quanto o consequente, e sobretudo para este último -, mais satisfatório do que amar a liberdade. A tirania do Eu encontra nesse amor uma ilimitação que dificilmente o amor da liberdade lhe permitiria.

Por esta e por outras, o chamado populismo de direita, com todo o seu cortejo difuso e inconsequente de raivazinhas anti-democráticas, e por mais nefasto que seja, me parece muito menos perigoso do que o amor teoricamente consequente pela tirania que uma vasta fatia da extrema-esquerda exibe. No primeiro caso, temos direito a uma das patologias possíveis da democracia. No segundo, à sua rejeição pura e simples. As reacções à invasão russa da Ucrânia fornecem um exemplo quase perfeito desse amor da tirania que é a própria substância política de muitos espíritos.

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