Comemorou-se ontem o 25 de Novembro. Ou melhor, não se comemorou. Não se comemora nunca. E porquê? Porque a esquerda o impede? Porque algumas almas sensíveis o acham “divisivo” e, portanto, insusceptível de festejo público? Sim, sem dúvida. Mas, ao mesmo tempo, porque lhe falta por inteiro a componente mítica do 25 de Abril. A acção levada a cabo por parte dos homens corajosos que fizeram o 25 de Novembro, derrubando as pretensões da esquerda totalitária de tornar Portugal numa espécie de Bulgária ibérica, e tornando o país, ao contrário, numa banal e prosaica democracia europeia, não oferece um mito dentro do qual possamos viver e pensar. Tem a demasiada aspereza da realidade. E grande parte das pessoas precisa de mitos para viver e pensar. Sem eles, perdem-se os pontos de referência, a história deixa de ser portadora de um sentido, não se sabe o que se dizer, as palavras deixam de ter um significado imediato e quase tangível, igualmente predisposto à acusação política – “fascista!” — e ao devaneio lírico – “respirar Abril”. Como comemorar uma data assim? Como celebrar o fim de uma ilusão totalitária? Não se faz.

Por acaso, os tempos presentes são um bom exemplo dessa necessidade do mito. A propósito do Chega – obviamente um partido “fascista” que não nos quer deixar “respirar Abril” (há uma “etiqueta respiratória” de esquerda) –, executam-se os velhos rituais que, até ao 25 de Novembro, tinham por objecto o CDS. Um deles é o ritual da ilegalização. Recentemente, o suavíssimo Fernando Medina, logo seguido pela dificilmente suave Ana Gomes, declararam o seu desejo de ver o partido populista de André Ventura ilegalizado. Se dependesse dele, afirmou Medina, era já. E, obviamente, Ana Gomes não lhe ficou atrás. A confusão do populismo com o fascismo, na sua própria indiferença para com a história, dá-se no interior do mito. O mito não tolera a equivocidade: se André Ventura é um demagogo populista, decorre daí necessariamente que representa a extrema-direita-fascista, e, se representa a extrema-direita fascista, o Chega não pode existir. Ora, fora do mito, o populismo é, de um certo modo, um luxo útil das democracias. Dá a ver coisas que, pelos canais mais habituais, não transpareceriam nunca, ou apenas se deixariam adivinhar a partir de factos avulsos e inexplicáveis: angústias, medos, obsessões. Dito de outra maneira: contribui para um retrato do país que temos de ter em conta e permite uma acção que possa ser eficaz para mudar a situação. Obedecer aos rituais que actualizam o mito, pelo contrário – ilegalizar o Chega, por exemplo –, é, além de flagrantemente anti-democrático, a receita certa para a cegueira e o desastre. É o que nos sugere, no entanto, como remédio para todos os males, o pensamento mítico do Dr. Fernando Medina e da Dra. Ana Gomes.

Infelizmente, eles estão longe de andarem sozinhos por essas águas. Tomemos o exemplo de uma criatura urbana como o historiador Rui Tavares. Eis alguém que, apesar de certas aparências em contrário, navega também ele em pleno nas águas do mito. Isso vê-se pelo modo como, com uma cedência aqui e outra ali, tudo faz para dividir a sociedade em dois campos muito estanques: o do bem e o do mal, é claro. Mesmo que, para a coisa surtir efeito, tenha de recorrer a uma espécie de amnésia auto-induzida. Dois exemplos apenas.

Aqui há uns dias, num debate televisivo, com, entre outros, o socialista Sérgio Sousa Pinto – que pensa, e pensa bem, fora do mito –, este último, declarando a sua profunda antipatia pelo Chega, sublinhou simultaneamente a sua repugnância instintiva por uma visão do mundo que o partilha entre puros e impuros, perfeitos justos e perfeitos injustos, e por aí adiante. E, às tantas, Sousa Pinto perguntou a Tavares se este se lembrava do nome do homem que chefiava o Partido da Esquerda Europeia na altura em que o então eurodeputado Rui Tavares, eleito pelo Bloco, nele se encontrava filiado. Todos temos os nossos momentos infelizes, mas o de Rui Tavares foi infelicíssimo: titubeando, respondeu que não, que não se lembrava – uma das mais inverosímeis respostas que se poderiam imaginar. Sousa Pinto lembrou-lhe então o nome: Lothar Bisky. E lembrou-lhe igualmente que, durante anos, Bisky fora um informador privilegiado da Stasi, a sinistra polícia secreta da Alemanha de Leste. Mas é claro que Rui Tavares não se poderia lembrar de nada. Uma das funções do mito é também o de promover o esquecimento selectivo, ou melhor: o de oferecer um método que desenvolva e aprimore o esquecimento selectivo que faz parte integrante da natureza humana.

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Outro exemplo. Dia 20 deste mês, Rui Tavares publicou no Público um artigo (“E se a direita anticolaboracionista tomar partido?”) em que, elogiando quem subscreveu o manifesto “A clareza que defendemos” (Público, 10 de Novembro), usa e abusa do vocábulo “colaboracionista”. Não há especial originalidade na coisa. Nos tempos da troika, na altura em que grandes fotografias de Angela Merkel apareciam em diárias manifestações pelo país adornadas com um bigodinho à Hitler, José Pacheco Pereira, é uma tristeza, também chamava “colaboracionista” a Passos Coelho e a quem quer que o apoiasse.

Não é uma originalidade, mas é uma vergonha. “Colaboracionista” tem um significado histórico muito preciso. Significa o acto de colaborar com o invasor nazi, tal como defendido pelo marechal Pétain no célebre discurso radiodifundido de 30 de Outubro de 1940. Significa isto, apenas isto, nada mais do que isto. Que uma criatura cordata como Rui Tavares recorra a esta expressão para descrever quem, discordando do manifesto em questão, aceita dialogar com o Chega, mostra bem o grau a que o pensamento mitológico da esquerda tomou conta do seu cérebro. Naturalmente, para ele encontra-se apenas “indignidade” no campo oposto, uma indignidade promovida “pelos motivos mais corriqueiros: a carreira, o sossego e a aprovação dos pares levam a melhor”. Falando por mim, é verdade: nos últimos dias tenho notados melhoras pessoais em todos esses domínios. E na saúde também.

Não quero apenas sublinhar o carácter obsceno da acusação, nem o seu ridículo (Ventura igual a Hitler, Rio igual a Pétain). Quero sobretudo fazer notar a que ponto a vida no interior do mito conduz fatalmente ao absurdo, ao nos dar, como alguém disse, uma “ilusória inteligibilidade” das coisas. Mas aparentemente é a única forma de vida e de pensamento que certa gente conhece.