A poucas horas de terminar 2024, já se pode dizer com segurança que este foi o ano mais alarmista de sempre. Ultrapassou 2023, que já o tinha sido. E 2022, antes disso. Uma sequência já robusta de anos mais alarmistas de sempre. Quer dizer, não é bem “de sempre”. Para ser exacto, 2024 foi o ano mais alarmista desde que há observações fiáveis de alarmismos. Sem instrumentos científicos precisos – como a Internet, que permite recolher milhares de artigos funestos e tuítes alvoraçados – não existem registos oficiais anteriores ao séc. XXI, apenas relatos de eventos históricos em que situações de emergência foram insufladas com o intuito de aterrorizar.
Por exemplo, temos memória do alarmismo apocalíptico do fim do primeiro milénio, lemos sobre a Peste Negra, ouvimos falar de caça às bruxas (em várias iterações), mas apenas desde finais do séc. XX é que se começaram a compilar dados sobre reacções histéricas e desproporcionadas a ameaças tornadas muito maiores do que na realidade são. Só há pouco tempo se usa Excel na análise de pânicos morais.
Numa altura em que se está sempre a falar de uma percepção de insegurança que não tem ligação à realidade e que é fundamental combater, é curioso constatar como há igualmente uma percepção de insegurança climática, também sem fundamentação nos dados, mas que é plenamente aceite e estimulada. Gozamos com as lamúrias das pessoas que se assustam porque lhes parece que agora há demasiados rostos escuros, mas valorizamos e encorajamos o pavor das que se assustam porque têm ideia de que agora há demasiados dias escuros.
Percebe-se porquê. Há um orgulho particular em viver no fim dos tempos. Faz-nos sentir especiais. Ainda para mais quando nos dizem que não só somos responsáveis por causar a destruição do planeta, como também temos o poder e a oportunidade de o salvar. Somos Thanos e o Capitão América num só.
Dia sim, dia não, publica-se uma jeremiada na imprensa a avisar para arrepiarmos caminho. Não é bem jornalismo, é pregação. Temor disfarçado de ciência climática. Pegue-se num artigo recente como exemplo: “Chega ao fim do ano mais quente das nossas vidas”.
Logo no primeiro parágrafo temos: “Os recordes têm sido batidos sucessivamente, confirmando aquilo que os cientistas prevêem há décadas: a única atmosfera de que dispomos está saturada de carbono e isso está a tornar a Terra cada vez mais inóspita para quase todos os seres vivos”. Saturada de carbono? Neste momento, há cerca de 425 ppm (partes por milhão) de CO2 na atmosfera. Ora, ao longo da história do planeta, a atmosfera já teve mais do triplo de CO2 na atmosfera. Como é que pode estar saturada com uma fracção do que já teve antes? É como dizer “o estádio de Alvalade saturado com 17 mil espectadores para assistir a este Sporting – Casa Pia”, dias depois de ter tido 45 mil pessoas a verem o Sporting – Benfica. Outra: “Terra cada vez mais inóspita para todos os seres vivos”? Como, se nunca viveram tantas pessoas ao mesmo tempo? Pessoas que se reproduzem a um ritmo nunca antes visto? Nem a viverem tão bem? Há hoje 97% menos mortes por eventos climáticos extremos do que havia há 100 anos. Ou seja, apesar de haver mais gente sujeita a desastres climáticos, morre-se menos. Deve ser matemática negacionista.
Pelos vistos, para a comunicação social não é possível admitir que o clima está a mudar mas apesar disso a humanidade está melhor. São jornalistas a colocarem o “mal” em malthusiano.
Continuemos. “Uma vez que continuamos a poluir a atmosfera, vamos ter, ano após ano, o oceano cada vez mais aquecido, terras cada vez mais quentes, tempestades cada vez maiores”, afirma Andrew Pershing, director de programas da Climate Central, uma organização científica sem fins lucrativos, citado pela Reuters.”
Poluir a atmosfera. Está a falar de CO2. Só que CO2 não é um poluente. É um gás com efeito de estufa, sem dúvida, mas não é poluição. É o gás que expiramos e é o que alimenta as plantas. Tem influência no clima, mas não é sujo. Porque é que o director de uma organização científica diria isso? Talvez porque, segundo a Wikipedia, a Climate Central é uma “organização noticiosa”. Se Andrew Pershing é um cientista, deve ser meteorolarmista.
A reportagem continua: “Este ano foi também o primeiro em que a temperatura média da Terra subiu 1,5 graus Celsius em relação à do período pré-industrial (1850-1900), quando a humanidade não estava a queimar combustíveis desenfreadamente”.
“Queimar combustíveis desenfreadamente” é uma forma de dizer “ter energia abundante, barata e disponível”, o factor mais importante para todos os avanços científicos que permitiram, entre muitas maravilhas na área da alimentação e medicina, elevar milhares de milhões acima da mais abjecta pobreza. Ei, calma aí a melhorar a vida das pessoas desenfreadamente, pá! Há ainda a questão do aumento de 1.5 graus em relação ao período pré-industrial (1850-1900), o “limite preconizado pelo Acordo de Paris”. Em que reunião de veraneantes ao longo da história é que se decidiu que os verões da segunda metade do séc. XIX foram os melhores da humanidade e que convinha mantê-los para sempre? Pelos vistos, nesses 50 anos o clima foi mesmo espectacular, nem muito quente, nem muito frio, sem grandes extremos. É interessante como a mensagem subjacente a este movimento tão moderno é “no tempo dos nossos avós é que era”.
A fonte deste artigo do Público – da imprensa em geral, diga-se – são os press releases de uma organização chamada WWA, que se dedica aos estudos de atribuição, preocupada em ligar um aumento de eventos extremos às actividades humanas, nomeadamente a queima de combustíveis fósseis. Isto quando o próprio IPCC, o rigoroso organismo científico da ONU, não o faz, tirando ondas de calor ou precipitação extrema. Esta organização fá-lo, com o objectivo declarado de obter argumentos para litigância judicial (nesta entrevista à fundadora e presidente, por exemplo).
Uma organização dedicada à atribuição de percentagens de culpa humana a um cataclismo não é propriamente novidade. A diferença é que antigamente eram padres. Agora, em vez de um Malagrida a vociferar contra fornicação, é uma senhora com um doutoramento e muitos seguidores nas redes sociais a arengar contra viagens aéreas e pessoas que não reciclam. O Malagrida queria penitências, a WWA exige indemnizações.
Isto tudo seria mais ou menos indiferente se o intuito deste proselitismo não fosse o abandono das fontes de energia fiáveis que ainda temos, para as substituir por outras, intermitentes e não armazenáveis. Numa altura em que todos os dias nos dizem que o clima está cada vez mais imprevisível, estamos a pôr as fichas todas em energia cuja produção implica prever o clima. Faz sentido.
O que vale é que, entretanto, a falsa percepção de insegurança climática vai resolver a questão da falsa percepção de insegurança. Com os apagões que vamos passar a ter, as ruas escuras vão torná-la em verdadeira percepção de insegurança.