Na semana passada, Lula da Silva afirmou que o terramoto em Marrocos é culpa do aquecimento global. Apesar de ainda estar em vigor a regra “não se goza com idiotices de Lula, pois isso beneficia o Bolsonaro e equivale a fascismo daquele mesmo ruim”, desta vez nem isso valeu ao Presidente brasileiro. Com maior ou menor destaque, Lula foi alvo de chacota mundial por esta afirmação tola sem qualquer base científica, ao estilo de um Donald Trump dos trópicos. Um trumpicalismo.

Um dia depois, foi a vez de Muqtada al Sadr, um clérigo iraniano, garantir que os desastre naturais em Marrocos e na Líbia se deviam à legalização do casamento homossexual.

Também houve galhofa. Fanáticos religiosos a interpretarem manifestações da Natureza como intervenção sobrenatural proporcionam boa comédia – pelo menos até se lembrarem de queimar alguém para aplacar divindades.

É sempre divertido gozarmos com um metalúrgico caipira de Pernambuco que ignora a teoria geológica da tectónica de placas. Ou com um supersticioso xamã islamita que continua a informar-se sobre o mundo em fascículos ditados por uma voz a um pastor numa gruta no deserto. É uma superioridade moral ocidental que até confortaria, não fosse o caso de não ter qualquer cabimento.

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É que, em termos de declarações de responsáveis políticos a culparem a acção humana por cataclismos, o Ocidente também tem os seus trunfos. As afirmações de Lula e do aiatola não são as maiores parvoíces que foram ditas recentemente a propósito da influência do aquecimento global nos fenómenos climáticos extremos. Não, senhor. Esse prémio vai merecidamente para o nosso António Guterres, que (sem dificuldade, diga-se) bate Lula em ignorância e o iraniano em histerismo apocalíptico. No mês passado, Guterres assustou-nos com a ebulição climática. Há dias já era com o colapso climático. Provavelmente, para a semana avançará com a decantação climática. Segue-se o holocausto climático. Depois, o armagedão climático. Qualquer dia, de tanto hiperventilar com isto, Guterres entrará em choque anafilático climático. Não sem antes nos causar uma enxaqueca climática.

António Guterres faz a síntese entre Lula e o abade xiita. Junta a falta de conhecimento do Presidente brasileiro (quando atribui, sem razão, causas humanas a catástrofes) ao moralismo do aiatola (quando censura um comportamento perverso – no caso de Guterres, o capitalismo). Isto de um tipo que foi o melhor aluno do Técnico. A inconsciência com que nós, portugueses, todos os dias entramos em prédios edificados por engenheiros é um misto de fé e de bazófia.

Neste momento, depois de líbios e marroquinos (por causa das tragédias que assolaram os seus países), brasileiros e iranianos (por serem governados por néscios), o grupo de pessoas que me suscita mais compaixão é o composto pelos técnicos das Nações Unidas que andam a trabalhar para nada. É que António Guterres é um daqueles chefes que não lê os relatórios que os subalternos preparam. Se tivesse passado os olhos pelo último relatório do Painel Intergovernamental sobre Alterações Climáticas (IPCC), o organismo da ONU dedicado ao clima, saberia que, ao contrário do que anda a fazer, a ciência não atribui a maioria dos fenómenos climáticos à acção humana, nomeadamente às emissões de CO2. Nem é preciso ler tudo, basta consultar a tabela 12.12, na página 1856 para perceber que, tirando os extremos de temperatura (quentes ou frios), não se detectam sinais de alterações atribuíveis à actividade humana em fenómenos como tempestades tropicais, cheias, seca, granizo, etc. E, nas projecções para o futuro (2050 e 2100) as hipotéticas alterações só se verificam nos cenários mais catastrofistas (RCP8.5 e SSP5). Cenários aliás considerados implausíveis por partirem do pressuposto de que, no que diz respeito a emissões, ao arrepio do que tem acontecido, não só nada será feito para as reduzir, como até serão aumentadas.

Guterres recebe o relatório dos seus técnicos e atira-o imediatamente para o lixo. Corrijo: para a reciclagem, pois tem consciência ambiental. Nós, portugueses, não podemos dizer que estamos surpreendidos. Lembramo-nos bem que o Governo de António Guterres tinha figuras como Sócrates ou Armando Vara. É óbvio que Guterres não liga muito ao que os subalternos andam a fazer.

Entretanto, equipado com este obscurantismo voluntário, António Guterres esteve há dias na Cimeira do Clima de África, onde discorreu sobre neutralidade carbónica e a eliminação de combustíveis fósseis a governantes de países africanos pobres que não tiveram oportunidade de usar os vastos recursos energéticos para saírem da miséria. É o equivalente a dar conselhos sobre jejum intermitente a um sem-abrigo.

Mais do que Secretário-Geral das Nações Unidas, Guterres fala como líder das Nações Ungidas: as ricas e virtuosas, que gostam de catequizar os pobrezinhos.

O leitor lembra-se quando houve escândalo por Isabel Jonet dizer que não se pode comer bifes todos os dias? Guterres está a dizer isso a africanos que até têm uma vaca no quintal. De boca cheia a mastigar um saboroso filet mignon.