Tudo se disse sobre o bicho. Todos bateram no bicho. O bicho foi ridicularizado, denunciado, acossado. Só não lhe espetaram uma faca porque não o encontraram sozinho num beco sem saída. Tornou-se um pária. Apesar disto, por incrível que pareça, não esquecendo os muitos defeitos e erros do bicho, precisamos de lhe gabar a resiliência: não só ainda não morreu, como se alojou bem impertinente na língua, um dos nossos locais mas íntimos. E aí vive como uma afta.
Nasceu já aleijadinho, resultado da soma de ideias erradas, ao estilo do monstro de Frankenstein (partes enjeitadas de corpos diferentes). Tinha tudo para correr mal, e de facto correu, ainda corre, e há-de correr.
Se fosse bicho de estimação – é-o apenas para uns quantos –, teria a desculpa da estima, descontando a parte do bicho. Acontece que, quando nos deparamos com ele, sentimos repulsa, não o queremos em casa. Preferimos mantê-lo distante, no máximo deitado à porta, como lembrança dos erros cometidos.
Talvez conseguíssemos adoptá-lo, ainda que seja repelente como um gato sem pêlo, se cumprisse a missão a que se propôs: unir a família. Mas a família nunca esteve desunida, mesmo usando grafias diferentes. Simplesmente trata-se disso mesmo, de uma família: entidades distintas partilhando o sangue à sua maneira.
Eu sei. Repudiar o bicho já cansa. Mas é preciso fazê-lo, sob pena de o bicho nos repudiar a nós. Neste momento cabe uma ressalva para que o retrato fique mais claro. Esquecia-me de esclarecer. Claro que «bicho» é a designação correcta para o malogro que dá pelo nome de Acordo Ortográfico.
Quero apenas realçar os traços da fisionomia do bicho que considero mais aberrantes.
A cabeça do bicho. Achar que o laboratório, a intervenção artificial na ortografia, resolve problemas que nunca existiram. O caso torna-se ainda mais grave porque os cientistas que conceberam o bicho são loucos: queriam a unificação e inventaram e mantiveram duplas grafias; queriam a simplificação e abateram a etimologia a eito, conforme o estado de espírito. Ao terminar, olharam para o bicho com ternura e fé cega, dizendo «É lindo». Ainda não perceberam que engendraram um Deus ex machina para um enredo resolvido.
O tronco do bicho. Encarar a ortografia como uma arma política, procurando que a sua nova pretensa unidade lhe dê mais influência. Trata-se de uma instrumentalização da língua que em nada a beneficia, tanto mais que a submete a um espartilho demasiado apertado. Será que não conhecem a riqueza, nomeadamente vocabular, que a língua ganhou em cada país? A unidade é um mito, tal como é um mito ver na diversidade um empecilho.
Os membros do bicho. Considerar que a oralidade e a grafia devem ser aproximadas, numa visão limitada do que são ocorrências distintas, mas complementares, da mesma realidade. Além disso, qualquer falante já tropeçou no bicho ao lê-lo, passando, sem querer, a articular erradamente. Agora sim, a língua escrita incomoda a língua falada.
O rabo, melhor, a cauda. Enorme e proibitiva. Trá-la de fora mesmo quando a tenta esconder. Entalou-a demasiadas vezes nas portas. São os muitos defeitos e incongruências que circulam de boca em boca para rir ou chorar, consoante a tolerância.
E assim fez-se grande e grotesco. Quando o entregaram para adopção, já vinha viciado. Atiraram-no para cima de nós e agora alegam, perante o nosso espanto, «Não faz mal, daqui a uns anos ninguém reparará no bicho», como se a insistência resolvesse o erro.
Repito. Tudo se disse sobre o bicho. Todos bateram no bicho. O bicho foi ridicularizado, denunciado, acossado. Mas ainda aí está. Sempre que o virem, por favor não lhe dêem de comer. Com perseverança, combatendo a sua resiliência, espera-se que morra à fome.
Escritor