É do conhecimento comum que existe uma quantidade razoável de automóveis construídos no Brasil. Honda, Fiat, Chevrolet, Volkswagen entre outras marcas têm fábricas no Brasil. A meio do séc. XX o governo do Brasil angariou umas quantas construtoras para se instalarem naquele que é o maior mercado da América Latina e fechou de forma quase brutal as importações com recursos a impostos inimagináveis, chegando um carro importado a custar quase o dobro do que custa no outro mercado de referência da região, o México. Mas para os brasileiros é bom, porque os carros lá fabricados são baratos? Não, na realidade os carros fabricados no Brasil são muito mais caros lá do que quando chegam ao México ou aos EUA. Mais, a margem das construtoras no Brasil chega aos 10%, ao contrário do mesmo veículo contruído nos EUA ou na Europa em que a margem não chega a metade. Ainda por cima, os carros são piores. Alguns dos carros vendidos no Brasil não têm as mesmas exigências na homologação e chegam a ser perigosos em caso de embate.

A pergunta que se coloca é: então no que é que isso é bom para o Brasil? Bem, sem a atitude protecionista do governo federal brasileiro, a verdade é que o mesmo bemcustaria muito menos e tinha uma qualidade superior. À semelhança da AutoEuropa no nosso caso, a indústria brasileira beneficia com o fabrico, mas se a proteção não existisse não estaria a fabricar automóveis na mesma? O facto de o Brasil ter um dos maiores construtores do mundo de aviões parece mostrar que sim, que indústria pesada não é problema para o país-continente. E Portugal fabrica automóveis sem se fechar a nada e sem ter as condições quase ilimitadas do Brasil. Portanto, se o Brasil usasse os seus enormes ativos, a começar nas pessoas, para fazer o que sabe fazer melhor e importasse aquilo que não sabe fazer, ou não tem vantagens em fazer, vivia muito melhor. Há uma corrente de economistas brasileiros que reclama isto há muitos anos.

O que é que isto tem a ver com a Matemática portuguesa? Num artigo recente do Alexandre Homem de Cristo, ele perguntava, com alguma razão, porque é que o governo se preocupa tanto em mudar o programa de Matemática quando as notas estão a cair? E levantava a hipótese, estatisticamente correta, de que o governo se preparava para mudar o programa de forma a melhorar as notas e não o ensino, como todos os governos fazem. Visto do outro lado, há inúmeras queixas de pais dizendo que os miúdos, em vez de aprenderem alguma coisa, estão a decorar atalhos que lhes vão dar a nota, mas sem a necessária compreensão dos princípios básicos. Eu não consigo avaliar, pelo que vou dar estas queixas como boas (o meu filho com idade para isso até é interessado e gosta da disciplina). E, nesse sentido, seria compreensível a atitude do governo, nomeando um professor de Coimbra, Carvalho e Silva, para dirigir um grupo de trabalho para resolver o assunto. Seria, mas não é. Na verdade, não consigo concordar com nenhuma das posições e acho que estamos simplesmente a fazer o mesmo que os brasileiros com os carros. Eu explico.

Antes de começar, deixem-me dizer que não sou “especialista em ensino de Matemática”. Não sei o que isso é fora de uma sala de aula, pelo que acho essa a pior desculpa que alguém pode dar para se abstrair do problema. Quem tem que ser especialista no ensino de Matemática são os professores de Matemática. Estes aplicarão, em cada uma das turmas, a sua forma de ensinar a cada um dos alunos que, por sua vez, terão a sua forma de aprender. Ignoro completamente o que será um “especialista de ensino”. Se, de facto, existissem “especialistas de ensino”, metiam-se a dar aulas no Youtube e resolvia-se o problema das escolas de uma vez para sempre, greves de professores incluídas. Aquilo que é o nosso papel, de cidadãos, é exigir que a Matemática apareça ensinada e aprendida. Não só porque pagamos para isso, mas porque entregamos aí o maior dos ativos do país, os nossos filhos.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Agora, alguém me explica porque é que temos um programa de Matemática nosso? Os nossos filhos são geneticamente inferiores aos filhos dos outros? Os nossos professores são uns imbecis? Deve haver uma razão muito forte para que o nosso programa de Matemática seja diferente do programa da Alemanha ou da Coreia do Sul. Das três, uma. Ou os nossos filhos são atrasados, ou os professores deles é que são ou a nossa Matemática é diferente da Matemática dos outros. Não vejo outra razão honesta para que tenhamos que ter um programa próprio na matéria, principalmente quando é óbvio que não o sabemos fazer, quer na ótica do Alexandre, quer na ótica do governo.

Pode, obviamente, haver questões de correlação com as demais disciplinas. O que nos leva às demais disciplinas. Ora vejamos em que disciplinas precisamos mesmo de um programa próprio. Português, sem dúvida, ninguém o fará por nós. História, também. Geografia, em parte. O resto não há a menor razão para que o programa seja localizado, muito menos que as metas de aprendizagem sejam diferentes. Se fossemos bem-sucedidos comparativamente aos outros, ou quase tão bons como os outros, até se compreendia. Agora, andamos há décadas nesta conversa. Há décadas que há um grupo de iluminados, saídos sabe-se lá de onde, que sabem o que é melhor e que determinam, sabe-se lá como, o que devem os professores ensinar aos alunos e como o devem fazer. E há décadas que geração atrás de geração de portugueses é lançada ao lixo para proteger o brilhantismo das luminárias que as condenam à ignorância.

Com todo o respeito pelo senhor professor de Coimbra, cuja competência não tenho a menor razão para duvidar, devo dizer que será, talvez, o dia de ir buscar quem tem o capital de o saber fazer. Quem tem um sistema a trabalhar de facto, quem tem professores que ensinem e alunos que aprendem. Vamos buscar o ministério de Haia, Helsínquia, Oslo. Porque 40 anos, uns 50 ministros da educação e uns 500 peritos depois, continuar-se a achar que desta vez é que é, começa a sair de tal maneira do razoável, que se calhar a questão genética terá que ser levantada, senão dos miúdos, pelo menos dos pais deles.

Se isso significar tirar o Ministério da Educação da 5 de Outubro para Berlim ou Helsínquia, porque não?  Parece-me óbvio que esses sabem fazê-lo e nós, depois de todas as tentativas, depois de todas as gerações que condenamos a servir às mesas, continuamos exatamente com as mesmas questões e discussões que tínhamos quando eu entrei na escola no Pliocénico Superior. Não se evoluiu nada, não se aprendeu nada e não se resolveu nada. Vamos mudar outra vez o programa de Matemática porque sim e vai servir até ao próximo que será revisto e contestado com as mesmas parvoeiras de sempre.

Tal como no caso da indústria automóvel brasileira, a nós fica-nos muito mais caro fazer cá programas de Matemática, que saem piores e sem qualidade. E o pior é que nada disso tem a ver connosco porque somos um povo reconhecidamente muito evoluído nessa matéria, como são os brasileiros na indústria pesada. Os nossos jovens exportam hoje o seu raciocínio abstrato para o mundo inteiro, mas esses são os que sobreviveram ao sistema de ensino. Todos os sistemas de seleção natural são sistemas de otimização e quanto mais rígida é a seleção, melhor é o resultado final em cada indivíduo que sobreviveu. O nosso problema está naqueles que não sobreviveram e que era missão, de todos nós, levá-los até onde os outros chegaram. E qual a razão para sobreviverem tão poucos? Protegermos a “indústria” nacional de “especialistas de ensino” que produzem programa atrás de programa para coisa nenhuma. Uma vergonha.

(As opiniões expressas neste artigo são pessoais e vinculam apenas e somente o seu autor)
PhD em Física, Co-Fundador da Closer, Vice-Presidente da Data Science Portuguese Association