O problema do preço (elevado) da electricidade está dissecado há muito tempo. Também se sabe bem quem os criou. Uma comissão parlamentar de inquérito sobre este assunto só pode ser entendida como uma manobra de diversão, útil para continuar a adiar soluções que são consideradas juridicamente impossíveis. E útil para evitar que as energias se concentrem a investigar as razões que justificam o dinheiro que o ex-ministro da Economia Manuel Pinho recebeu do BES quando era governante. É um jogo perigoso que por puras razões populistas pode criar ainda mais problemas à EDP, sem que nada se ganhe em troca.

Comecemos por este texto de Ana Suspiro em que se faz o retrato factual dos custos políticos da energia. Os subsídios pagos às energias renováveis (22% da conta de electricidade das famílias), os Custos de Manutenção do Equilíbrio Contratual (os CMEC, em que estão centradas as designadas “rendas excessivas” e que correspondem a 8% da factura) e o défice tarifário (1,5%) explicam cerca de 30% da factura de electricidade das famílias. Somemos a isso outros custos e temos a conclusão: mais de 40% do valor da factura de electricidade das famílias é explicada pelos designados Custos de Interesse Económico Geral (CIEG).

Dito isto, governantes e deputados sabem bem onde actuar para baixar o preço da electricidade. O problema é que não conseguem. Nas energias renováveis e nos CMEC por causa dos contratos. No caso do défice tarifário a protecção jurídica é agravada (na óptica de quem gostaria de acabar com isso) pelo facto de boa parte dele estar hoje titularizado, ou seja, há poupanças ali aplicadas. A EDP, por exemplo, usou esse crédito que tem sobre os consumidores para ir buscar dinheiro, transformando-o em títulos.

Todo este problema foi criado por decisões políticas. Os governos, com especial relevo para o de José Sócrates, quis apostar nas energias renováveis, numa altura em que o risco ainda era elevado para o sector privado, e a decisão que tomou foi garantir a rentabilidade, paga pelos consumidores. Na liberalização do mercado da electricidade substituíram-se quase todos os Contratos de Aquisição de Energia pelos CMEC em vez de acabar com eles, num processo que começou ainda com Durão Barroso e Santana Lopes e foi concluído e alterado já com José Sócrates. Finalmente criaram-se ainda mais custos porque não se quis que esses compromissos de rentabilidade se reflectissem nos preços, o que fez nascer o défice tarifária que é na prática a dívida dos consumidores às eléctricas, destacando-se a EDP por ter mais clientes.

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Esta última decisão, de não reflectir nos preços os custos das decisões políticas e do mercado, desencadeou inclusivamente a demissão de um presidente da Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos (ERSE). Jorge Vasconcelos propôs, em 2007, uma subida da tarifa eléctrica em 15,7% e o Governo, por decisão de Manuel Pinho, desautorizou uma autoridade que é suposta ser independente e determinou um aumento máximo de 6%. Jorge Vasconcelos demitiu-se.

Chegámos à era da troika com todo este intricado de custos escondidos – rentabilidades acima do mercado para a EDP e outras empresas do sector das renováveis mais o défice tarifário por não se ter reflectido o custo no preço. No Programa de Ajustamento estava inscrito o compromisso de acabar com isso (na altura, no Negócios, entre outros textos, escrevi este). Pedro Passos Coelho nunca concretizou essa reforma estrutural e este processo foi aliás causa da demissão do secretário de Estado da Energia Henrique Gomes, em 2012. A necessidade de vender a bom preço a EDP, numa altura em que não apenas Portugal corria o risco de colapso como toda a Zoa Euro se encontrava ameaçada, justificou o adiamento desse fim das “rendas excessivas”. Vendida a EDP o argumento passou a ser que não se podia agora quebrar um contrato.

De contrato em contrato inviolável chegámos a 2018. Todos os que podem tomar medidas conhecem os dossiers, há documentos e estudos mais do que suficientes. Neste momento a EDP está a ser alvo de uma Oferta Pública de Aquisição (OPA) por parte do seu maior accionista, a empresa estatal chinesa CTG que a comprou na era da troika. Pelos acontecimentos dos últimos dias já se percebeu bem que seja qual for o desfecho da OPA, a EDP vai ficar diferente, mais pequena ou igual, depende do que os accionistas fizerem.

É com todo este quadro que os deputados decidem avançar com uma comissão parlamentar de inquérito aos CMEC recuando a 2004. O objectivo, dizem, é corrigir os erros políticos cometidos no passado. Esperemos que seja também apurar responsabilidades políticas. Porque para corrigir todos sabemos o que era preciso: dinheiro para correr o risco de rever alguns dos contratos que pesam na factura da electricidade. Porque do ponto de vista técnico já se sabe tudo.

Seguindo a linha do tempo, esta comissão parlamentar de inquérito é basicamente desencadeada pelo Bloco de Esquerda depois de surgirem as notícias sobre a mensalidade que Manuel Pinho recebia do BES quando era ministro da Economia. Num dia o líder do PSD afirma que quer chamar Manuel Pinho ao Parlamento e no dia seguinte o BE anuncia que quer uma comissão parlamentar de inquérito que começa por ser a Pinho e se alarga depois às rendas da energia.

O tema do preço da electricidade é sem dúvida o mais importante para o bolso dos portugueses. Mas esse só precisa de comissões parlamentares de inquérito para apurar responsabilidades políticas. Baixar o preço da energia, acabar com as rendas excessivas, já se percebeu, requer dinheiro coisa que o Estado não tem. Assim sendo esta comissão de inquérito não irá resolver o problema da factura da electricidade. Esperemos que ao menos torne claro quem foram os responsáveis políticos por esses custos e tenha a coragem de investigar o suficiente para se saber se foram apenas erros políticos. Esperemos que não seja apenas uma manobra de diversão para esquecermos o caso Manuel Pinho. Ou uma comissão parlamentar de inquérito como a que teve como tema a gestão da Caixa que nem esperou pela decisão dos tribunais para ter acesso à informação dos grandes devedores.