Vale mais tarde do que nunca. O PS apresentou uma proposta para alterar as regras que regem as ordens profissionais, mais de duas décadas depois de se ter tornado claro que estas associações estavam a criar barreiras à entrada na profissão, que já dificilmente se justificavam pela garantia de qualidade do serviço. Foi preciso estar em causa o dinheiro do Plano de Recuperação e Resiliência para que se tivesse a coragem de enfrentar estas corporações, depois de esta reforma não ter avançado no tempo da troika.

O sonho egoísta de qualquer profissão ou empresa é ser monopolista. Conseguir que mais ninguém preste os seus serviços ou venda os seus produtos é garantia de ganhos adicionais, pelo poder que dá a quem está do lado da oferta. Há pelo menos duas décadas (lembro-me de ter escrito sobre este tema no início deste século) que as ordens estavam também a funcionar como uma barreira à entrada de novos profissionais, o que prejudica especialmente os mais novos e limita o acesso dos cidadãos aos serviços que prestam. Respeitando a natureza humana e a característica mais simples do Homo Economicus, quem já estava dentro da profissão (os ‘insiders’) ia criando regras para impedir que os novos entrassem, protegendo-se da concorrência e garantindo assim uma renda. Os casos mais graves eram os da Ordem dos Advogados e dos Médicos.

O diagnóstico foi explicitado e transformado em medida a adoptar no Programa de Ajustamento Económico e Financeiro, mais conhecido como o plano da troika, enquadrado nas reformas estruturais dos mercados de produtos e serviços. Acabou por nunca se concretizar. A interpretação que António Costa deu à ausência dessa reforma, na era da troika, acabou por se traduzir numa critica ao PSD e CDS, considerando que o Governo de Pedro Passos Coelho não teve coragem. Nunca saberemos se o PS faria esta mudança se não fosse uma das condições para receber o dinheiro do Programa de Recuperação e Resiliência, condição essa que foi imposta pelos países europeus designados como frugais.

É de facto muito inteligente o argumentário do PS, ao assumir como sua a necessidade de mudar estas regras, na linha aliás do que recomendavam os tecnocratas da troika: assumir as medidas como sendo medidas do Governo e não da troika. Mais, o Governo de António Costa não perdeu uma oportunidade para criticar as ordens, especialmente a dos Médicos, desde pelo menos 2019, criando o ambiente favorável às mudanças. Foram criticas de restrição ao acesso à profissão, criticas à iniciativa da Ordem dos Médicos de fazer uma auditoria ao que se passou no lar de Reguengos de Monsaraz, criticas do ministro do Ensino Superior Manuel Heitor sobre os médicos de família e finalmente o processo público de abertura do curso de Medicina da Universidade Católica a servir também para que a opinião pública percebesse o poder da Ordem dos Médicos.

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Valia a pena o PSD e o CDS aprenderem com o PS como é que se vai conquistando a opinião pública para a aprovação de medidas que parecem impossíveis por via do poder dos interesses instalados. É pena que o PS não se dedique a outras reformas, nomeadamente à da administração pública e das empresas detidas pelo Estado, com o mesmo empenho. Há várias explicações possíveis, entre elas ser muito mais difícil convencer o PCP e o BE e não se querer correr o risco de desagradar a quase um milhões de funcionários públicos.

Tendo conquistado a opinião pública para um problema com mais de duas décadas, o Governo e o PS não venceram obviamente as ordens, que criticam violentamente as alterações propostas socialistas. Claro que é preciso verificar se as acusações que fazem têm fundamento – designadamente se abrem a porta a uma ingerência indevida do Governo. Porque há uma ingerência que é obrigação de qualquer Governo, a de garantir que o acesso à profissão não tem barreiras desnecessárias que protegem os que já estão instalados e prejudicam as novas gerações e, mais grave ainda, limitam a prestação de serviços por reduzirem a quantidade de profissionais.

O problema é que, depois do que fomos vendo ao longo dos anos, designadamente na medicina e na advocacia, as ordens actuaram verdadeiramente como uma barreira ao aumento do número de médicos, até mais do que no caso dos advogados. Os grandes vencedores da mudança que o PS propõe são não apenas os jovens que querem entrar nessas profissões, mas toda a sociedade.

Carregamos de facto alguns vícios que herdámos do Estado Novo, com a suas leis de condicionamento industrial, que protegiam os instalados. O caso das ordens é bem capaz de ser um dos poucos exemplos em que este Governo põe em causa interesses instalados. Temos de agradecer a Bruxelas, às condições impostas para aceder aos cheques do Programa de Recuperação e Resiliência.

É lamentável que não sejamos capazes de adoptar as medidas que são necessárias para garantir o desenvolvimento sem ser à força da falta de dinheiro, como aconteceu na era da troika, ou para ter acesso a mais dinheiro, como vemos agora. Resta-nos agradecer aos países europeus, e especialmente, neste caso, aos conhecidos como frugais (Áustria, Dinamarca, Holanda e Suécia) por terem lutado para impor condições de acesso ao cheque de dinheiro europeu.