Para criticar a visão progressista da jurisprudência do Supremo Tribunal que integrava, o célebre juiz Scalia contava que os seus colegas defendiam que uma nova interpretação da lei se justificava porque a sociedade tinha amadurecido, o que o obrigava a lembrar-lhes que também podia apodrecer.

A mesma lógica pode ser usada para definir o debate europeu em Portugal, 35 anos depois da assinatura do tratado de adesão à CEE: a CEE já não existe, o claustro do Mosteiro dos Jerónimos não permite grandes aglomerações e os responsáveis políticos da época estão hoje mais próximos do Panteão Nacional do que da eternidade em Bruxelas. A sociedade “amadureceu”.

A adesão portuguesa, no início de 1986, foi a grande conquista da democracia ao garantir cobertura internacional ao regime que a revisão constitucional de 1982 tinha conseguido estruturar.

Daí em diante, a história é conhecida: a prosperidade assente (e limitada) nos fundos europeus e a abertura cultural de um país ensimesmado que, ainda imperfeito, passa a sentar-se à mesa do primeiro mundo. De resto, o grupo de partidos que apoiou a adesão à Comunidade Económica manteve-se unido por muito tempo em torno do consenso que justificou o processo: a esperança de uma democracia liberal. O sonho de abril foi rapidamente substituído pelo sonho europeu, que conseguiu parecer simultaneamente mais ambicioso e realista, superior ao ponto de se ter tornado largamente indiscutível – afinal, era a hipótese de uma democracia à europeia com financiamento europeu para um país que não era nem democrático nem endinheirado.

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Hoje, o consenso parece ter amadurecido ao ponto de arriscar apodrecer. O alargamento – ou a destruição, dependendo da escola filosófica – do velho grupo de partidos de poder expôs o fim da indiscutibilidade da democracia liberal, que não é uma originalidade nacional, mas que obriga a pensar no futuro da discussão portuguesa.

Para lá do êxito, os falhanços do sonho europeu merecem atenção. A convergência prometida acabou por não chegar, com os portugueses a enriquecerem sem se tornarem tão ricos como os cidadãos dos países que já pertenciam à CEE e a estagnação económica parece ter-se alargado ao regime, com instituições percebidas como disfuncionais, distantes e ineficazes. O resultado da adesão parece ter sido a criação de uma democracia à portuguesa com dinheiro europeu, o que não é exatamente aquilo que foi prometido.

Ainda assim, numa altura em que por todo o mundo a democracia liberal parece condenada a cair na rua ou nas urnas, o debate europeu em Portugal continua largamente consensual – e, sem surpresa, também disfuncional. Não só porque os piores chavões se tornaram invencíveis (há sempre uma “Europa Social”, a “importância do digital” e a “necessidade de comunicar melhor”), como o risco de parecer qualquer coisa que não um federalista convicto garante condenação imediata. Durante muito tempo, falar em debate europeu exigia considerável bondade, porque a verdadeira questão parecia resumir-se à corrida para perceber quem queria mais Europa e, por consequência, dela conseguiria extrair mais fundos.

Dificilmente essa situação se vai manter. A crítica europeia é especialmente difícil num país economicamente dependente e em que a existência da democracia está geneticamente ligada à pertença europeia. Não obstante, no período de assistência financeira percebeu-se que era possível ter sucesso à esquerda com um programa crítico da política europeia. À direita, apesar do relativo insucesso da tentativa do CDS nos tempos de Maastricht, o espaço existe para lá da ação económica e será tão maior quanto mais progressista for o programa político europeu.

O aparecimento bem-sucedido e duradouro de um discurso anti-europeu parece destinado a acontecer, sobretudo a partir dos extremos, que têm em Bruxelas um ícone fácil de apontar como caricatura da política liberal. Ao velho consenso, que ainda tenta perceber como pode sobreviver a estes tempos de chumbo, importará compreender que o posicionamento político não se esgota na dicotomia entre europeístas e soberanistas, entre aqueles que são simplesmente “a favor” ou “contra” a União Europeia.

Para um debate saudável é necessária a reabilitação do ceticismo, tão maltratado nas questões europeias (precisamente porque o cético questionava o consenso, não podia distinguir-se dos anti-europeístas e os conceitos passaram a sinónimos). Na verdade, quanto mais complexa a política europeia, mais sensata se torna a predisposição para o ceticismo como opção pela dúvida metódica e a devida diligência perante a promessa de utopia nas entrelinhas de mais uma diretiva.

Se o futuro do debate europeu parece interessante porque vai finalmente trazer variedade, o risco de deixar a discussão ser conduzida pelos extremos não pode ser desconsiderado. Há espaço para outro discurso que, não defendendo a implosão da União Europeia ou o fim do Estado-nação, venha lembrar que o progresso perpétuo traz o perigo do apodrecimento. A sua entrada no debate seria tão inovadora quanto necessária.