O debate vem desde Abril de 2017. Como é sabido, na sequência de declarações de Marcelo Rebelo de Sousa, no Senegal, a esquerda woke veio exigir uma grande discussão pública sobre o tema da escravatura. Essa exigência chegou à sociedade portuguesa sobretudo através das páginas do Público e o jornal acarinhou-a desde a primeira hora, deu-lhe espaço e muito combustível, tendo o cuidado e a isenção de dar acolhimento não apenas ao discurso woke mas, também, ao contraditório.

De então para cá, esse debate foi-se fazendo, ainda que sempre coxo ou em défice por falta de comparência. De facto, por muito paradoxal que pareça, e com uma ou duas excepções, as pessoas que tão encarniçadamente exigiam o grande debate sobre escravatura não vieram a terreiro argumentar sobre factos históricos e suas interpretações. Remeteram-se ao silêncio, à cobarde maledicência das redes sociais ou, então, limitaram-se a repetir uma lengalenga política e ideológica — uma lengalenga woke. Ao longo destes cinco anos e meio de debate — ou talvez fosse melhor designá-lo por conversa paralela — essas pessoas mantiveram os mesmos erros, as mesmas distorções e superficialidades que já propalavam em Abril de 2017, quando o debate começou. Apesar de se ter mostrado repetidamente, com factos e documentos, que estavam errados, os activistas continuaram, como todos os ideólogos e propagandistas, a repetir a mesmíssima receita.

Ou seja, estes cinco anos e meio mostraram que essas pessoas não queriam, na verdade, discutir ideias e acontecimentos históricos, mas apenas um palco e um megafone através dos quais pudessem fazer a sua propaganda. Mas — e esse é o ponto principal — a partir do momento em que encontraram uma oposição com que talvez não contassem, passaram a querer também outra coisa, que os radicais sempre querem e que é importante no contexto deste artigo: que as vozes contrárias se calassem, que os jornais deixassem de publicar o que essas vozes escreviam.

O Público acabou, sem o saber, de lhes fazer a vontade ao decidir não publicar o artigo “Mamadou Ba e o mito do Haiti” e isso talvez mereça algumas considerações. É que as razões invocadas pelo jornal para justificar a sua insólita decisão de não publicação online desse meu texto não são atendíveis — como quem estiver interessado poderá avaliar por si próprio neste link. Mas mesmo que fossem razoáveis e convincentes, ou, até, que nem tivessem sido apresentadas razões, pois o Público tem obviamente o direito e o poder de publicar ou deixar de o fazer, ficaria sempre no ar a seguinte pergunta (e é essa que é importante): quando, no contexto de um debate de interesse público e de informação histórica, se tapa a boca a um dos habituais intervenientes na discussão, estará o jornal que a acolhe a tomar parte e partido nela, e a condicioná-la?

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É verdade que eu não fiquei impossibilitado de expor as minhas ideias, pois tive, graças ao Observador — a cujos responsáveis publicamente agradeço —, a possibilidade de fazer chegar aos leitores o tal texto que o Público achou por bem não divulgar. A verdade, porém, é que me foi vedada a faculdade de o fazer chegar aos leitores do Público, a quem originariamente se dirigia, e por isso a pergunta subsiste: estará esse jornal a escolher um dos lados do debate? Estará, por essa via, a influenciá-lo? Eu receio bem que sim e essa acção, vinda de um órgão de comunicação social que acolhia e promovia um amplo debate sobre o assunto, e que, como pode ler-se no seu estatuto editorial, pugna pela “existência de uma opinião pública informada, activa e interveniente”, causa-me perplexidade.

Os jornais têm todo o direito de ter as suas inclinações políticas e ideológicas, e é salutar que, tendo-as, as assumam claramente. O Público não tem, que eu saiba, qualquer inclinação expressa, considera-se neutro e equidistante. Estará a sê-lo? Não há amplos debates sobre assuntos históricos, nem opiniões públicas devidamente informadas, quando se suprimem a informação e a análise historicamente fundamentadas. Ao impedir que a minha perspectiva crítica sobre as fantasias de Mamadou Ba (e de muitas outras pessoas) a respeito da revolução haitiana chegasse aos seus leitores, o Público favoreceu objectivamente uma das partes intervenientes no debate e protegeu a narrativa ideológica e mitológica a respeito do Haiti, narrativa tão cara à esquerda woke por esse Ocidente fora. Importa perceber que a decisão de recusar o meu artigo é, também, uma acção de protecção dessa narrativa. Com ela o Público, mesmo não o querendo, inclinou o campo de jogo para um dos lados. Terá sido justo e equidistante?

Dir-se-á que tudo isto não passa de um pequeno incidente do quotidiano dos jornais que desta vez veio bater à minha porta. Mas eu não comungo dessa visão light ou soft das coisas. Não quero fazer tempestades em copos de água, mas também não pretendo assobiar para o ar como se nada tivesse acontecido. Acho, por isso, que incidentes destes — e serão provavelmente vários — devem vir à tona de água e ser do conhecimento dos leitores pois interessam à boa respiração da opinião pública e à salubridade e equidade dos debates feitos nessa esfera através da comunicação social.

Não afirmo nem sugiro que tenha havido uma parcialidade consciente, voluntária, nesta decisão editorial do Público — e o jornal esclarecê-la-á melhor, se assim o entender. De uma coisa, porém, estou convencido, e agora falo já não como autor, mas como leitor e assinante: há uma deriva woke no jornal, sente-se no estilo geral, nas opções editoriais, nas temáticas privilegiadas, e essas coisas, mesmo que inconscientemente, acabam por influenciar e por ter peso em certas decisões. E, eventualmente, de uma forma recíproca. Eu sou leitor do Público desde o seu início e vejo, com pena, que a opinião moderada e de direita se afastou das suas páginas, não sei se de motu proprio se por ter sido afastada, talvez por ambas as razões. O facto é que o jornal é, hoje, menos plural, menos abrangente, do que já foi e são os seus leitores que ficam a perder com esse infeliz estreitamento.