Os eleitores brasileiros não parecem, de facto, ter alternativa. Bolsonaro tem saudades da ditadura militar? Sim, mas o PT ainda chora por Fidel Castro. O PT insiste num estatismo supostamente desenvolvimentista? Sim, mas Bolsonaro, antes de se converter súbita e recentemente ao liberalismo económico, também. As “esquerdas radicais” não são verdadeiramente alternativa às “direitas populistas”, e vice-versa. São demasiado iguais, mesmo quando passam o tempo a chamar-se fascistas e comunistas uns aos outros. No entanto, se esta for mesmo a escolha, haverá que decidir qual é o mal menor. Mas a democracia não devia ser só isto.
Tolstoi achava que as famílias infelizes eram sempre infelizes à sua maneira, mas no caso dos regimes, a infelicidade tende a ser geral. A escolha que as sondagens prometem aos brasileiros não é singular, e lembra outras eleições na Europa e nas Américas. Durante anos, os regimes ocidentais foram governados por direitas e esquerdas democráticas. Na Europa, eram os partidos da Democracia Cristã e os da Internacional Socialista. Divergiam em muita coisa, mas coincidiam na aliança americana e na integração europeia, como meios de garantir o Estado de direito democrático e economias prósperas. A democratização do sul e do leste da Europa passou, em grande medida, pela formação de congéneres desses partidos, como o PS, o PSD e o CDS em Portugal. É esse sistema partidário que agora está em causa. Nuns países, os antigos partidos de governo estão a ser substituídos, como o Syriza substituiu o PASOK; noutros países, a ser tomados de assalto, como os Trabalhistas em Inglaterra pelos Corbynistas.
O grande perigo para a democracia num mundo livre não são os radicais e populistas em si, mas a tentação dos partidos do regime de pactuar e “geringonçar” com radicalismos e populismos. É essa traição das elites, tanto ou até mais do que os resultados eleitorais, que está a dar força a radicais e populistas. Mas por mais apetecíveis que sejam as maiorias parlamentares ou presidenciais que se possam fazer com esses votos, há que ter a lucidez de resistir. Porque radicais e populistas não são apenas versões mais “brutas” das esquerdas e das direitas democráticas: pertencem a outras famílias políticas, por mais maquilhados que apareçam. Não, nem todos os votos são iguais: há soluções de governo que põem em causa os fundamentos da democracia liberal. E não, os regimes democráticos liberais não são simples mecanismos de representação: têm valores e princípios. Isso foi claro até 1989, durante a “guerra fria”. E tem de voltar a ser, para bem das democracias liberais.
Em segundo lugar, antes das “medidas concretas” para resolver “problemas”, há que perceber o que fez as direitas e as esquerdas democráticas perderem a iniciativa para radicais e populistas. Mais uma vez, há que regressar a 1989. Demasiada gente entendeu o fim da guerra fria como o fim das divisões ideológicas que haviam definido a política. Direita e esquerda seguiram então a estratégia de subtrair questões à controvérsia política, invocando coisas como a “globalização”, apresentada como inevitável, ou fomentando o conformismo do “politicamente correcto”, tratado como irresistível. Temas como as migrações ou a segurança deixaram assim de poder ser discutidos livremente.
O resultado foi o acumular de problemas em relação aos quais, dentro do regime, parecia nada se poder fazer, nem sequer dizer. Radicais e populistas exploraram naturalmente os decorrentes sentimentos de impotência cívica: de repente, o voto nesses movimentos deu, a muita gente, a sensação de que podia outra vez fazer ou dizer qualquer coisa. Aos defensores da democracia liberal, à direita e à esquerda, convém restituir aos cidadãos o sentido de que são agentes, o que passa por as elites políticas assumirem sem tibieza, nos termos da democracia liberal, alternativas claras e debates frontais. Só se a política voltar a ser democrática deixará de ser populista ou radical.