Se numa eleição nos dessem a escolher entre um político que deixa dúvidas sobre o processo eleitoral, e outro político responsável por um dos maiores esquemas de corrupção que alguma vez subverteram uma democracia, talvez gostássemos de acreditar que nos recusaríamos a optar. Não foi, porém, o que aconteceu no Brasil. Bolsonaro e Lula foram, em conjunto, a escolha de 91,63% dos eleitores na primeira volta das eleições presidenciais, e dividiram o país ao meio na segunda volta. A direita votou em Bolsonaro, e a esquerda em Lula. Os dois nunca tinham tido, em eleições anteriores, tantos votos como agora. Lula foi eleito com um resultado superior às suas vitórias de 2002 e de 2006. Bolsonaro, mesmo perdendo, teve mais votos que em 2018.

Porquê? Porque a direita desconfia do voto electrónico, e a esquerda acredita na corrupção? É provável que não. O que aconteceu é que uns e outros conseguiram imaginar o candidato em que votaram, com todas as suas contra-indicações, como um mal menor perante a alternativa. Para os eleitores de Bolsonaro, tudo era preferível a Lula, e para os eleitores de Lula, tudo era preferível a Bolsonaro. É este o maior risco da polarização política: fazer com que todos os males, desde que sejam os nossos, nos passem a parecer menores. Num ambiente destes, o carácter e a competência, para o sucesso na política, tornam-se menos importantes do que a identidade tribal. A má moeda tem assim a sua grande oportunidade de expulsar a boa. É fatal que a escolha se faça eventualmente entre os piores.

Há, no entanto, uma coisa mais deprimente do que a polarização política: é o debate sobre a polarização política. Toda a gente lamenta as divisões. Toda a gente lembra saudosamente tempos em que os adversários se respeitavam. E toda a gente tem, invariavelmente, o mesmo remédio para voltar à idade de ouro: bastaria que o outro lado passasse a concordar connosco. Porque, como é óbvio, o problema é sempre do outro lado: foi o outro lado que se “radicalizou”. A ninguém ocorre que achar o outro lado “radical” pode significar apenas que nos tornámos intolerantes a ideias que não sejam as nossas.

Para sair da polarização, há quem, como fez esta semana Barack Obama, peça piedosamente mais civilidade. Não é um mau princípio. Mas antes de saber como sair da polarização, é preciso perceber como entrámos. Há vinte anos, andávamos todos em coro a deplorar o “centrão”. Lembram-se? O problema então não era a divisão, mas a falta dela. Que aconteceu entretanto? O debate político está agora encharcado pela ideia de múltiplas crises (económica, demográfica, climática, etc.). Todos concordam que é preciso mudar. Mas como é natural, não concordamos sobre o sentido da mudança, e, dado o que está em causa, também é natural que sejamos veementes. Esta é uma explicação. A outra é que os políticos, no meio de crises em relação às quais não sabem bem o que fazer, perceberam que diabolizar os adversários é uma maneira fácil de arranjar votos. O caso mais óbvio é do Partido Democrata nos EUA. Atormentado pela inflação, não lhe ocorreu nada de melhor do que descobrir que afinal o Partido Republicano tinha sido fundado e é dirigido por Hitler.

Como sair daqui? Há um livro que, a esse respeito, vale a pena lembrar. É do escritor francês Maurice Barrès (1862-1923). Chama-se Les Diverses Familles Spirituelles de la France. Foi publicado em 1917, durante a I Guerra Mundial. É uma obra comovedora. Barrès era um nacionalista, que identificara a tradição monárquica e católica como a essência da França. Por isso, tratara republicanos, socialistas, judeus e protestantes como estranhos à nação. Na década de 1890, fora “antidreyfusard”. Mas em 1917, mudara de opinião: não apenas os católicos e os monárquicos, mas também os republicanos, os socialistas, os protestantes, e os judeus lhe pareciam agora formar “famílias espirituais” da França, dignas igualmente de respeito. Que lhe acontecera? Isto: Barrès vira republicanos, socialistas, protestantes e judeus, ao lado de católicos e monárquicos, todos juntos a combater na frente de guerra, para defender a França da invasão alemã. Sim, percebera que eram todos franceses, para além das suas divisões políticas e religiosas, e isso obrigara-o a rever o que pensava dessas divisões.

Imagino que algo de semelhante se esteja a passar, hoje, na Ucrânia, um país politicamente dividido e crispado durante anos, e que a invasão russa uniu na linha de combate. Talvez que, noutros países, a consciência de ameaças como são a ditadura neo-soviética de Putin ou a ditadura neo-maoista de Xi Jipeng venha um dia a fazer-nos descobrir o que nos une, e a poupar-nos à infelicidade de escolher entre os piores.

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