É compreensível que tenhamos pegado no conhecimento e tenhamos construído a ciência. E que, a partir dela, tivéssemos chegado à técnica. E que tenhamos democratizado a técnica a ponto dela romper barreiras geográficas e chegar a mais pessoas. E que, com isso, tenhamos “normalizado” produtos, “normalizado” comportamentos ou “normalizado” aprendizagens. E que se tenha criado esta ideia, com a qual vivemos, que o mundo da ciência e da técnica é um mundo civilizado, mais democrático, mais amigo do conhecimento e amigável para com as pessoas. E tudo o que lhe ficasse aquém fosse um bocadinho “pré-histórico”.

O mundo, a escola e, até, a política tecnocratizaram-se. E, ao mesmo tempo, criou-se a ideia que quanto mais tecnocrático e mais burocrático o mundo fosse mais leal e mais justo se tornaria. E menos vulnerável à “pequena corrupção”. Como se a quantidade de formulários, os concursos e as avaliações de desempenho, por exemplo, fossem sinónimo de um mundo mais evoluído. Mais ancorado no conhecimento. E mais igualitário. E, por consequência, mais humano.

Ao mesmo tempo, a escola tornou-se obrigatória. Por mais anos. E para todos. (Felizmente!) Por mais que ela continue a achar que as crianças devem aprender da mesma maneira e à mesma velocidade. E replicasse um modelo que, ao mesmo tempo que castigava quem copiava premiava quem repetia. E supusesse que aprender, claro, as “obrigasse” a estar quietas, atentas e caladas. E, quando desenhassem uma casa, que elas se “normalizassem. Mesmo que, para tanto, “tivessem”, todas, de pintar o telhado de vermelho.

Entretanto, as universidades absorveram — elas, também — esta visão tecnocrática que fez com que os professores passassem a ser mais valorizados pela “ciência a metro”, medida pelo número de “papers” que apresentam ou que publicam, pelos formulários e pela burocracia que os enquadra e “normaliza”. Mais do que por tudo aquilo que – pela sabedoria, pela paixão de ensinar ou pelo impacto que possam ter em quem ensinam – eles pudessem trazer à universidade.

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A par, a psicologia foi-se resignando a leituras “mecânicas” da condição humana. A ponto de palavras como pensamento, amor, esperança, felicidade ou tristeza, por exemplo, parecerem quase interditas na formação dos psicólogos. Tendo-se passado a privilegiar a modulação, a gestão e o controle (do stress, das emoções ou da ansiedade). Ou uma ideia “positiva” da psicologia, que parecia sugerir que os dilemas do nosso crescimento, as dores das relações familiares ou o sofrimento humano fizessem parte duma “psicologia negativa”. Ou, ainda — da mesma forma como se separam brinquedos didácticos e histórias, fantasia e jogo no crescimento das crianças – como se houvesse formas objectivas de discorrer e de pensar. E, diante delas, os sentimentos fossem subjectividade, simplesmente. (E, por isso, fossem desvalorizados e desqualificados.) Em vez de representarem o cérebro humano a pensar, a ligar informação, a intuir e a sintetizar, de forma inteligente e esclarecida, e em tempo real; como de facto se trata.

Entretanto, a moda ao alcance de todos, a par da escola, democratizou (felizmente) mais, ainda, o mundo. E as desigualdades esbateram-se. O mundo deixou de se dividir entre “princesas” e “sapos”. E pudemos todos lutar por ter mais cuidados connosco. E por ser mais atraentes e mais bonitos.

Enquanto isso, a tecnologia trouxe-nos a televisão, os computadores, as consolas e a internet.  E os écrans passaram a “dominar” a nossa vida. A ponto de reconhecermos que os nossos filhos já nasceram quase a saber programar. Tal é forma intuitiva como tratam por “tu” o comando da televisão, o computador ou o telefone dos pais. E como parecem, de certa forma, ter passado a ser “smartphonianos”. Como se isso fosse um estádio mais evoluído da Evolução. Que, “outrora”, só nos considerava humanos.

Entretanto, a Google referiu que, comparado com o tempo real de atenção de um peixinho vermelho, quando anda às voltas num aquário — 8 segundos — o tempo de atenção e a capacidade de concentração das crianças que nasceram ligadas a um ecrã táctil será de 9 segundos.

Ora, chegados aqui, para além de muitos outros aspectos que terão contribuído para o que estamos a viver, arriscamo-nos a ter a juventude que terá os melhores pais e os pais mais comprometidos com a parentalidade que a Humanidade já produziu. E a juventude mais escolarizada que a Humanidade já conheceu. Mas, também, a mais “normalizada”. A que mais cresceu sob o “guarda-chuva” que faz da subjectividade humana e dos sentimentos um  obstáculo ao rigor e um sinónimo de “perigo.” Aquela que mais aprendeu numa escola onde a singularidade, o pensamento crítico, a dúvida e a pergunta terão estado, igualmente, “acorrentadas”. A juventude mais cercada por ecrãs. A  mais sedentária e, porventura, a mais narcísica que a Humanidade já conheceu. E aquela para quem os sonhos e a paixão parecem ter-se burocratizado. E os projectos de vida ter sido engolidos por ideias de dinheiro, de poder e de vaidade. Receio, portanto, que, movidos pelas melhores das intenções, estejamos a construir uma Humanidade à margem da singularidade, da alteridade, do contraditório e da própria… humanidade. E que, da atenção ao pensamento e à acção, pareça querer-se transformar numa “Humanidade de peixinhos vermelhos”.

O que me parece grave é que, quanto maior a contenção dos nossos filhos mais eles reagem pelo impulso. Quanto mais dependentes menos autónomos. Quanto mais inseguros mais envaidecidos. E quanto mais normalizados mais assustados com a singularidade e com a diversidade.

É claro que “a culpa” de todo este “ideal” de sermos todos iguais, por fora, e “grandes” e “bons”, por dentro, não é dos nossos filhos. Somos nós que o construímos para eles. Somos nós que criamos esta ideia de que somos mais sérios, mais justos, mais inteligentes e mais iguais, hoje. E mais competentes. E com mais sucesso. (Mas, se é assim, porque é que não somos todos, simplesmente, mais felizes?…)

E, como se tanta deriva já não fosse perigosa, temos redes sociais. E isso leva-nos a perguntar, com Sérgio Godinho: “Pode alguém ser quem não é?” E a resposta surgir na primeira olhadela que se dê pelas redes sociais. Em que, a propósito de uma sopa, duma ida a um espetáculo ou seja a pretexto do que for, se “posta”, da mesma forma como as pessoas competem entre si por causa das notas dos filhos ou da sua última viagem: exibindo-se. É verdade que é bom que todos tenhamos vidas melhores e mais atractivas do que as dos nossos pais. Mas a vaidade com que o fazemos leva a que tudo o que “desmonte” esta ideia de tanta “perfeição” nos faça reagir com ira. E, muitas vezes, com ódio. Como se a nossa afirmação diante dos outros passasse mais por lhes chamar “feios”, “maus”, “burros” ou coisas piores. Do que, propriamente, por sermos “só” nós.

Esta ideia que um mundo mais democrático é um mundo de pessoas iguais, por fora, não é verdade. Quanto maior é o narcisismo com que se cresce maior é o ódio com que se reage. Àquilo que nos interpela, nos põe em causa e nos obriga a pensar. O discurso do ódio, de que tanto se fala, é construído por nós; todos os dias. Não que o façamos de forma intencional, claro. Mas enquanto não educarmos para se saber escutar, para se pensar com aquilo que se sente, para se aprender com os outros, enquanto não se reeducar as pessoas para a palavra (e, já agora, enquanto não nos desligarmos mais dos ecrãs), menos os nossos filhos encontrarão na diversidade os argumentos com que apurem a singularidade. E, pior que tudo, se formos por aqui, a vida assusta-os. E leva-os a agir em vez de ouvir. E a “agredir” em vez de perguntar.

Não, o mundo não cresceu para pior. Mas precisa de juntar a tudo o que conquistou a humanidade da qual se desencontrou. Sob pena de sermos pessoas equipadas de tecnologia “até aos dentes”. Mas, vezes demais, um excelente exemplo de “inteligência artificial”. Mais próximos dos peixinhos vermelhos do que merecíamos ser.