Confesso que adorei a entrevista que o Dr. Magalhães e Silva deu ao Público a semana passada. O relato cândido acerca do funcionamento da “elite” Portuguesa ilustra bem as origens do momento a que chegámos.
Comecemos pelo início. O Dr. Magalhães e Silva faz parte da chamada Geração de 62, construída em torno da mitologia das lutas académicas contra o regime. Um conjunto de filhos-família, como Jorge Sampaio, Isabel do Carmo ou José Medeiros Ferreira manifestaram-se contra a ditadura, ganhando, assim, as credenciais necessárias para a sua legitimação no regime democrático. Magalhães e Silva, Nuno Brederode Santos ou Luís Nunes de Almeida juntar-se-iam mais tarde a este grupo de consumados génios.
Sampaio era o ponta de lança desta gente. Um suposto gentleman Inglês – parece que até houve um dia, ó glória, em que falou Inglês na CNN, um feito ao alcance de poucos –, Sampaio nunca passou de um político medíocre que subitamente, por desventuras e sortes várias, viu-se sentado em Belém. De resto, a importância que Sampaio e a sua entourage dão a si próprios é fascinante, como bem ilustra o livro de José Pedro Castanheira. Dois tomos, com mais de duas mil páginas numa biografia claramente acima das suas possibilidades. Nas palavras sábias de Vasco Pulido Valente, citando o próprio Sampaio, “30 amigos certos valem bem três mil militantes na rua”. De facto, voltando ainda a VPV, “não mais do que 30 amigos conseguiram que ele finalmente chegasse a Belém, onde a vacuidade final do grupo se manifestou em todo o seu esplendor”.
De resto, a entrevista do Dr. Magalhães e Silva é bem ilustrativa da importância dos amigos. Macau, onde o nosso caro e excelso Dr. passou como Secretário Adjunto e Justiça, Membro do Conselho Superior de Justiça de Macau e, mais tarde, Representante do Presidente da República no Grupo de Ligação Luso-Chinês, foi um belíssimo sítio para fazer amigos e montar redes de influências. Por lá, passaram figuras gradas do regime como Jorge Coelho, António Vitorino, Pedro Siza Vieira, Eduardo Cabrita e Diogo Lacerda Machado, recomendadas, de acordo com o Dr. Magalhães e Silva, por António Costa que havia feito o estágio de advocacia – adivinharam – na Jardim, Sampaio, Magalhães e Silva e associados. Presumo que não preciso de fazer um desenho aos meus caros leitores para perceberem o que une toda esta gente e o modo como em 2022 têm um papel central no regime.
O mais surpreendente na entrevista foi o reconhecimento daquilo que, durante décadas, foi um segredo de polichinelo em Lisboa: a corrupção desenfreada existente em Macau. Citando o Dr. Magalhães e Silva: “o dinheiro chegava aos partidos em malas vindas de Macau”. Quando questionado sobre o que fez, enquanto Secretário Adjunto e da Justiça em Macau, o nosso Dr. admite, com uma candura quase ternurenta, que não faz rigorosamente quanto a isto porque interessava apenas manter “a criminalidade local num nível socialmente aceitável”. O que Magalhães e Silva entende por isso é um mistério. Será que a cultura local exige malas de dinheiro vivo entre empresários e políticos? Confesso que não consegui deslindar o mistério. Agora que todos os crimes estão prescritos, talvez nas suas memórias, assim as haja, possamos ser esclarecidos quanto a este ponto.
Para além do caso de Macau, sobejamente conhecido na corte Lisboeta, o Dr. Magalhães e Silva brinda-nos com uma descrição dos eventos que levaram à queda do governo de Santana Lopes. Apesar de estarmos no Verão, não vale a pena debatermos tudo novamente. Em 2004 e em 2015, a minha opinião foi sempre a mesma. Santana Lopes e António Costa tinham total legitimidade para governar. Os Portugueses elegem deputados e não chefes de governo. No entanto, a entrevista é reveladora do ambiente daqueles dias. De acordo com Magalhães e Silva, Luís Nunes de Almeida, então Presidente do Tribunal Constitucional, terá dito a Sampaio: “vê lá se vais entregar o poder à direita”. Vítor Constâncio, então governador do Banco de Portugal, apoia a decisão dizendo: “Ó Jorge, ainda até se pode economizar algum, não tem importância nenhuma”. A visão do Estado como coisa própria do PS sai bem ilustrada de tudo isto. A independência do Tribunal Constitucional não existe e, naturalmente, o Banco Central está lá para apoiar “o Jorge”, nunca para pensar no país a prazo e de forma autónoma do poder político.
A minha diversão com a entrevista continuou nos dias seguintes. Ana Sá Lopes, a jornalista do Público que entrevistou o Dr. Magalhães e Silva, escreveu um artigo comentando a própria entrevista. Confesso que fiquei abismado. Numa entrevista em que são confessados crimes de corrupção, apesar de prescritos não deixam de ser crimes e de merecer a condenação moral, Ana Sá Lopes foca-se no “bullying político” que Jorge Sampaio terá sofrido e de como a sua presidência terá sido a mais difícil de sempre por causa do episódio Santana Lopes. Tenho pena que Ana Sá Lopes não se lembre que, com todos os seus defeitos, Ramalho Eanes teve de lidar com os militares e metê-los nos quartéis, que Cavaco teve José Sócrates e a troika e Marcelo teve uma pandemia mundial e a guerra. A presidência de Sampaio, especialmente quando comparada com Marcelo, foi um passeio.
De resto, o objectivo central de Ana Sá Lopes foi dar o recado do chefe. Se Costa for para Bruxelas, como deseja, é necessário que Marcelo cumpra a constituição de Junho de 2004, e não a de Novembro de 2004, que Ana Sá Lopes afirma tratar-se uma mudança Constitucional, e indigite um novo primeiro-ministro do PS sem eleições. Recado recebido.
P.S.: Sugiro aos leitores que leiam o artigo de Ana Sá Lopes, especialmente aquela parte em que, citando Mário Soares, aproveita para tratar, por duas vezes, Cavaco Silva como “o gajo”. Eximo-me de comentar.