No rescaldo do congresso do PS, vale a pena regressar à pergunta que debatemos no último “Fora do Baralho”. Porque é que o PS continua a ganhar eleições? Como é que o PS se tornou um partido hegemónico em Portugal em vias de tornar-se uma organização análoga ao LPD japonês, em que as disputas internas entre facções praticamente se substituíram às eleições gerais? Qual o motivo pelo qual o eleitorado não penaliza fortemente o partido depois de escândalos que seriam mortais para outros partidos políticos?

O maior sinal de que o processo de hegemonização do PS na sociedade portuguesa está a decorrer pode ser visto através de um tema que percorreu todo o congresso deste fim de semana. As figuras gradas do partido reconhecem que Portugal enfrenta problemas e desafios complexos e, ao mesmo tempo, assumem que foram cometidos erros durante a governação de Costa. No entanto, afirmam que apenas o PS é capaz de solucionar esses mesmos problemas e que apenas com mais do mesmo será possível chegar a resultados diferentes. O facto de as elites socialistas tentarem esta estratégia não é surpreendente. O que é surpreendente, isso sim, é o seu mais do que provável sucesso. Quais os motivos por detrás deste aparente puzzle?

Em primeiro lugar, o PS é o partido mais próximo do eleitor mediano e, portanto, com maior potencial eleitoral. No seu capítulo no Essencial da Política Portuguesa (Tinta-da-China 2023), Ana Maria Belchior e Conceição Pequito mostram de forma inequívoca que o PS é o partido com maior congruência com o eleitor mediano. A congruência política é uma medida clássica para avaliar o nível de correspondência entre as preferências dos eleitores e o posicionamento dos partidos na escala esquerda-direita. Quanto maior a congruência entre os partidos políticos e os eleitores, mais próxima será a sua posição e, consequentemente, mais provável que os eleitores escolham esse partido. Não surpreende, pois, que o PS seja o partido com maior potencial eleitoral.

Em segundo lugar, o PS beneficia da percepção que os eleitores portugueses têm sobre o que é a democracia. Este é um debate complexo e que vai muito além de um artigo de jornal. No entanto, de forma resumida, aquilo que sabemos sobre a percepção do eleitor mediano em Portugal diz-nos que a sua concepção de democracia vai muito para além da ideia procedimental. Ao contrário dos eleitores das democracias mais ricas, em Portugal, os eleitores concebem a democracia, acima de tudo, como um regime de redistribuição de riqueza e de aumento de bem-estar no contexto do Estado social. A existência de eleições livres e competitivas e de liberdade de expressão não constitui por si só uma democracia. Os portugueses rejeitam aquilo que na literatura é apelidado de uma concepção minimalista da democracia. Ao mesmo tempo, sabemos ainda que os eleitores portugueses menorizam a lisura procedimental (procedural fairness), se esta for contraposta à capacidade do sistema político em distribuir benefícios materiais. Isto é, estão menos preocupados com o modo como os políticos atingem os fins a que se propõem do que com os resultados daquilo que conseguem dar à população.

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Do ponto anterior decorre um corolário importante. A governação de Pedro Passos Coelho foi muitíssimo mais negativa e consequente para o PSD do que o escândalo de José Sócrates para o PS. Apesar de José Sócrates ter sido acusado de crimes gravíssimos e atentados à lisura procedimental do regime, os cortes levados a cabo por Passos Coelho, em grande medida num contexto herdado do governo anterior e da maneira como a austeridade era então gerida na União Europeia, atingiram o âmago da percepção que o eleitor mediano tem sobre a democracia. Por isso, as consequências para a marca PSD foram (e são) muitíssimo mais duras e prolongadas do que Sócrates para o PS.

Em terceiro lugar, ao longo dos anos, o PS constituiu-se como o “dono” dos temas do Estado social, nomeadamente a saúde, a educação e a segurança social. O conceito de issue ownership foi cunhado na ciência política para denotar os partidos que conseguem tornar-se, aos olhos do eleitorado, como particularmente competentes na gestão desses temas. Note-se que falamos aqui de percepções: estas não correspondem necessariamente à realidade. Os partidos tornam-se donos dos temas políticos quando lhes dedicam uma especial ênfase. Se pensarmos na dinâmica de competição política ao longo das últimas duas décadas, percebemos que, enquanto o PS se tornara o dono dos temas do Estado social, o PSD havia apostado na ideia de contas certas e de equilíbrio orçamental como elemento distintivo do seu programa. Ao longo dos últimos anos, graças ao trabalho meritório que realizou sob forte pressão europeia, o PS tornou-se também o dono do tema das contas certas, esvaziando um dos poucos temas dos quais o PSD era dono. As consequências eleitorais desta mudança estão à vista.

O último motivo pelo qual o PS consegue manter resultados eleitorais robustos e ser sistematicamente reconduzido ao poder é a coligação eleitoral que conseguiu construir ao longo dos últimos anos. Os dados dos inquéritos pós-eleitorais mostram-nos que o eleitorado do PS é, neste momento, envelhecido, menos educado do que a média e com forte implementação nos reformados. Esta coligação eleitoral é praticamente imbatível. Por um lado, sabemos que existe uma função curvilínea entre idade e probabilidade de participação eleitoral. O PS é especialmente forte na parte de cima da curva para a direita. Por outro lado, esta coligação tem uma forte componente clientelista. Apesar de o termo ser usado de forma derrogatória no discurso comum, as relações clientelistas de poder são uma das estratégias para os partidos políticos conseguirem chegar ao poder. Estas relações constituem-se quando o eleitorado entra num sistema de trocas instrumentais em que assume tacitamente (ou, às vezes, explicitamente) que vota no partido na expectativa de receber em troca um benefício material concreto ou difuso. Neste caso, é absolutamente evidente que o PS construiu uma coligação eleitoral forte e fortemente clientelar que torna o partido fortíssimo em campanha.

Significa isto que o PS é imbatível? Obviamente que a competição política é multidimensional e não está escrita na pedra. No entanto, será difícil desalojar o partido do poder. De resto, basta pensarmos que, nas últimas décadas, o PSD apenas ganhou eleições temporariamente quando o PS se embriagara do poder e caía de podre. Obviamente que tudo isto são péssimas notícias para a nossa democracia. Um regime em que de facto opera um partido único nunca é saudável, especialmente num contexto em que a sociedade civil é fraca, a economia é débil e existem fundos da Europa que conseguem ser capturados para benefícios privados em vez de servirem o bem público. Para além disso, como vemos nas notícias diariamente, a comunicação social está em crise e com dificuldades em fiscalizar o poder. No entanto, o povo é quem mais ordena. Em Março, o povo ditará se está contente com o estado das coisas.