Após a queda do Muro de Berlim, em 1989, era expetável um futuro auspicioso para a Europa e Rússia: mais do que um desanuviamento de relações, acreditava-se numa aproximação assente na cooperação económica e afinidades histórico-culturais.

Essa parecia ser a evolução natural do nosso mundo e, perante as novas ameaças que surgiam do Extremo-Oriente e do seu flanco Sul, a Europa até menosprezou a sua fronteira oriental, embalada no doce idílio de uma futura ligação à Rússia.

Cinco anos depois do fim da guerra fria, no meu primeiro livro, eram bem outras as minhas preocupações: a sustentabilidade do planeta, assente em pegadas ecológicas; e o apertado controlo das administrações estatais, que considerava a fonte major das ameaças à liberdade e ao desenvolvimento humano.

O bicho-homem, porém, sempre imprevisível, encarregar-se-ia de sustentar lideranças que, sangradas na Ásia Central e desprezadas no Pacífico, conduziram a inesperadas construções geopolíticas que transformaram os meus verdes sonhos em negros pesadelos.

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Lançado hoje o caos e posta até em causa a sobrevivência de uma parte significativa da Humanidade, o melhor mesmo será identificar as causas inquestionáveis deste conflito à escala global, exercício sem o que não é possível enunciar soluções consistentes:

  1. A crescente pressão do lobi militar-industrial sobre a classe política, de que é sinal claro a tolerância aos massacres em série, dentro dos “modernos” EUA.
  2. A disrupção iminente do sistema monetário e financeiro, hoje firmado numa especulação desenfreada, que já não na produção e troca de bens básicos;
  3. O controlo de atividades estratégicas por poderosos grupos de oligarcas, que acumulam lucros estratosféricos enquanto as classes médias se afundam.
  4. O esmagamento da comunicação social livre, com a eliminação cirúrgica de milhões de vozes, incluindo o recurso a milhares de assassinatos;
  5. A supremacia das “máquinas administrativas” sobre o poder judicial, assim se abrindo uma janela de impunidade a crimes económicos e até contra a Humanidade;
  6. A profunda desregulação e instabilidade dos mercados, perante a degradação das regras tradicionais assentes na lei e na ética.
  7. A que acrescento uma “sétima praga”, que é a progressão dos extremismos religiosos e políticos, neste atual “Egipto” em que vivemos.

Por menos letal, e até fator de agregação entre os povos, já nem falo da covid. E para melhor se entender uma guerra que veio para ficar, dispenso também, por inúteis, mais delongas em torno de figurões como Putin, Trump e afins, de fresca ou longa data.

Centremo-nos na evolução histórica das últimas três décadas, que conduziu a dois modelos de desenvolvimento antagónicos no continente europeu: a oeste, a democracia que, com todos os seus defeitos, deu voz aos anseios de liberdade dos povos e assim se estendeu; a leste, a afirmação de uma oligarquia quase feudal, corrupta e sanguinária que, ameaçada pelos ventos de mudança, optou por se entrincheirar no seu castelo, protegida por quase cinco mil (5 000!…) bombas atómicas.

Com a Rússia também cada vez mais cerceada no Cáucaso, aí devido à ascensão otomana, e com a Ucrânia e a Moldova a piscarem o olho à Europa, enquanto a Bielorrússia erguia muros, era bem real a probabilidade da eclosão dum grande conflito: sobretudo depois dos “abanões” na Sérvia, Geórgia e Crimeia. Uma falha de visão imperdoável que assentou em muita ignorância e numa excessiva crença na força da democracia.

Esqueceram também os europeus, levados numa displicente onda de cooperação económica, de outra constante histórica: recorrentemente, os povos são varridos por psicopatas e paranoicos que, no seu delírio, acreditam poder subjugar os demais. E para que não restem dúvidas sobre estes conceitos, que são técnicos e não políticos, psicopata é quem não hesita em promover o sofrimento alheio, de que até retira gozo; já o paranoico é aquele que distorce as realidades, incapaz de perceber que que não é o “centro do mundo e arredores” e que os demais também têm direitos.

A 28 de fevereiro, quarto dia de invasão da Ucrânia, firmado em realidades, que não em interesses ou em sentimentos, previ uma “humilhante derrota da Rússia”: a contenção chinesa em Taiwan, o súbito reacender da instabilidade nos “sovietistões”, as pesadas perdas infligidas ao exército invasor e a firme resposta do mundo ocidental, incluindo a Turquia, eram indícios claros de que não íamos assistir a uma “excursão de finalistas”. Amargor partilhado pelo próprio Putin que, em desespero, nesse mesmo dia ameaçou recorrer a armas nucleares. Uma declaração extremada e insensata que ainda mais fez crer que ou a Europa travava a Rússia na Ucrânia, ou teria mais tarde de o fazer em linhas mais recuadas, porventura a partir de Lisboa.

Certo é que ainda hoje se multiplicam as cenas de horror e que a guerra está para durar, enquanto a ajuda à Ucrânia se processa a conta-gotas: dizem os “burros” que por cautela, para não humilhar a Rússia e se evitar uma retaliação nuclear; pretextam os “espertos” uma nova tática, que assim a beligerante América enfraquece as potências rivais, sem sacrificar um soldado.

E enquanto diariamente se assiste a forte agitação no Pacífico e no Báltico, e se desfiam teorias da conspiração, somos conduzidos a um dilema: ou se avança de imediato para a capitulação da Ucrânia, com cedência de uma parte do seu território a termo incerto; ou se prossegue com uma ajuda ainda mais eficaz, visando a rápida retirada do invasor. Metida num beco sem outras saídas, a Europa não pode manter a guerra em banho-maria, à espera de uma previsível convulsão política, em Moscovo. Até porque qualquer implosão do atual poder, pode levantar consequências ainda mais desastrosas para a paz mundial.

Em 1974, perante o avanço da União Soviética em todo o Império Português, o “genial” Henry Kissinger defendeu a paz podre e a saída de Portugal da NATO, até como “vacina para o resto do mundo”.

Em 2022, como pode alguém dar crédito a uma “avestruz” que hoje ainda insiste na capitulação da Ucrânia, cinzentamente incapaz de ler as lições da História e corrigir os tremendos erros da “juventude”?