Nas eleições europeias em França, o partido de Marine Le Pen ficou à frente. Era o que toda a gente esperava. O que ninguém esperava foi o que aconteceu a seguir, nessa mesma noite eleitoral: o presidente da república, Emmanuel Macron, dissolveu imediatamente a Assembleia Nacional. Ou melhor: começou por dissolver a Assembleia Nacional. Porque ainda ninguém sabe se, com o truque de precipitar legislativas, não dissolveu também o regime político francês e mais alguma coisa na Europa. Macron dirige a governação em França há sete anos. Afundou o país em dívidas e em desorientação. Resta-lhe agora, como último recurso, assustar os franceses com uma escolha desesperada entre o seu “centro”, e os “extremos” de Le Pen à direita, e de Jean-Luc Mélenchon à esquerda. Os franceses detestam-no? Pois terão de optar: ou ele, ou a “guerra civil”.

Para se salvar, Macron não se lembrou de melhor do que arrastar o país até à beira do abismo, e gritar-lhe: “vá, atreve-te a saltar”. Mas não é o primeiro governante europeu a recorrer a tais encenações. Em 2016, foi o primeiro-ministro britânico, David Cameron. Também Cameron andava atormentado com a progressão eleitoral de um rival, Nigel Farage, líder do eurocéptico UKIP, que venceu as eleições europeias no Reino Unido em 2014. Também Cameron julgou que se livraria da concorrência confrontando o país com uma escolha que lhe pareceu impensável: a saída da União Europeia. Quem ousaria ir, sem mapa, por caminho tão desconhecido? Acontece que os britânicos fizeram mesmo o impensável: votaram pelo Brexit. Depois do referendo, Cameron demitiu-se. O feitiço consumiu o feiticeiro.

Terá Macron mais sorte? Não importa agora adivinhar o fim do jogo em França. Importa, antes, perceber o que há aqui de comum. Tal como Macron, Cameron fez muita questão de exibir a sua juventude quando se tornou líder do Partido Conservador em 2005. Tal como Macron, Cameron quis libertar-se da tradição partidária, e oferecer-se, não como um dos dois lados de um sistema político bipolar, mas como um “centro” imaculado, rodeado da sujidade dos “extremos” (em 2016, Farage, à direita, e Jeremy Corbyn, o líder trabalhista, à esquerda). Tal como Macron, Cameron fez o seu “centro” assentar em duas coisas: o culto perdulário de um Estado grande, para clientelizar o voto da maioria idosa da população; e a adopção pirosa das causas a que hoje chamaríamos “woke”, de modo a obter a complacência da esquerda mediática e universitária. Com este exercício de demagogia e oportunismo, julgou-se imbatível para sempre.

Nunca ocorreu a Cameron que os eleitores pudessem chegar a um ponto em que aquilo que ele lhes mostrava como um precipício lhes parecesse a eles uma porta de saída. Há uma mistura perigosa de cinismo e falta de imaginação neste “centrismo”. Macron e Cameron pretendem substituir a dicotomia direita-esquerda, pelo maniqueísmo do centro vs. extremos. O objectivo é óbvio: demonizar como “extremistas” todas as alternativas ao seu poder. A alternância no governo passa assim a ser inconcebível: ou eles, ou os bárbaros; ou eles, ou o fim do mundo. E esperam, naturalmente, que ninguém prefira o fim do mundo. Daí, o paradoxo: porque acham que a razão e o bom senso estão exclusivamente do seu lado, não hesitam, quando aflitos, em sujeitar os países às mais radicais experiências de roleta russa. Eis como este “centrismo” suicida, pretensamente moderado, se tornou uma fonte de tensão e instabilidade na Europa.

Macron e Cameron assustam os salões com a “ameaça dos extremistas”. Talvez fosse de reflectirmos também na “ameaça dos centristas”, sempre prontos a fazer explodir o mundo para salvarem as suas vaidades e interesses.

Nota: por erro, nesta sexta-feira tinha sido inicialmente publicado um texto de opinião antigo de Rui Ramos. As nossas desculpas aos leitores.

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