Comecei a minha vida profissional a trabalhar no IGCP. Em 1997, ainda estava instalado no edifício do Ministério das Finanças. Havia lá um porteiro bastante mal-educado que não cumprimentava ninguém. A pretexto desse porteiro, um amigo contou-me que uma vez ia num elevador com a sua filha de 5 anos, quando entrou um seu colega do banco mal-encarado. Ao “bom-dia” do meu amigo, o mal-encarado nada respondeu. O meu amigo insistiu dizendo “bom-dia” três ou quatro vezes seguidas até que a sua filha, com toda a inocência, exclamou: “ohhh, é surdo!” O mal-encarado não tugiu nem mugiu, pelo que a criança lá terá ficado a pensar que seria mesmo surdo.
Lembrei-me desta história na semana passada, quando André Macedo, num post scriptum a um seu editorial com o titulo “Não há multa nem economia” no Diário de Notícias (DN), veio dizer que afinal Pedro Passos Coelho não falou na legislatura que Costa “roubou”, mas sim na “legislatura que derrubou”. Desculpou-se com a semelhança fonética das duas palavras. Perante o absurdo, houve quem nas redes sociais acusasse Passos Coelho de ter pressionado o DN para alterarem o conteúdo da entrevista. Felizmente, não temos de acreditar na palavra de André Macedo. A entrevista também passou na TSF e ainda se pode ouvi-la no seu site. A passagem situa-se entre o minuto 52 e 53. Convido o leitor a ouvir. Passos Coelho diz duas vezes “derrubou”. É perfeitamente audível e é impossível de se confundir uma coisa com outra. Para tal, basta não ser surdo. A não ser, claro, que se acrescente a dislexia auditiva ao rol de doenças que assolam o mundo.
André Macedo pode usar como desculpa que não ouviu a TSF e de ter ouvido apenas a gravação feita pelo seu jornal. Mas essa desculpa apenas revela pouco profissionalismo. Face às reacções que tal declaração gerou, e queixando-se Macedo da má qualidade da gravação — “O registo áudio é pouco percetível e confuso, além de que a resposta de Passos Coelho foi interrompida.” —, qualquer jornalista minimamente responsável e competente teria ido ouvir de volta a gravação. E, não sendo de boa qualidade, recorria ao áudio da TSF. Naturalmente, faria o desmentido no dia seguinte e não quase 15 dias depois. Aliás, independentemente das queixas e reacções, uma declaração tão bombástica — um ex-primeiro-ministro, e líder da oposição, falar de roubo de legislatura num país democrático — nunca poderia ser publicada sem ser reconfirmada as vezes que fossem necessárias para não restarem dúvidas. Ou seja, não é um problema de surdez: se não ouviu foi porque não quis.
Dirão alguns que eu estou a ser demasiado duro. Afinal, André Macedo alega boa-fé e garante-nos que logo que se apercebeu do erro se apressou a corrigi-lo. O problema é que os factos subsequentes demonstram mesmo falta de seriedade ou um descuido incompatível com bom jornalismo. Por exemplo, o DN publicou no dia 1 de Agosto uma entrevista a Miguel Sousa Tavares. Nessa entrevista, MST volta a referir que Passos Coelho se lamentou de “que Costa lhe roubou a legislatura”. Ou seja, mais de duas semanas depois, o DN continua a difundir informação falsa. Tendo sido publicada já depois do desmentido (admito que tenha sido feita antes), o mínimo a fazer era acrescentar uma nota a dizer que essa afirmação de Miguel Sousa Tavares era baseada numa informação falsa da responsabilidade do DN. Ou, caso tivessem vergonha de o fazer, o que seria compreensível, deveriam ter contactado MST sugerindo que corrigisse essa frase. Assim, apenas estão a contribuir para que daqui a um ano esta bojarda do roubo continue a ser atribuída a Passos Coelho. Enfim, por maior que seja a boa vontade a verdade é que André Macedo e o DN estiveram lamentavelmente mal em todo este processo.
Socorro-me das palavras de Nuno Garoupa no seu Facebook: “deturpar as palavras do líder da oposição é muito grave em democracia, mancha a reputação de um jornal, reduz a credibilidade daquilo que é reportado todos os dias na comunicação social (da próxima vez que haja declarações polémicas de algum líder político, teremos que esperar a confirmação oficial do próprio em áudio e imagem?). Deturpar as palavras do líder da oposição exige por isso uma intervenção decisiva da ERC [Entidade Reguladora para a Comunicação Social] que para isso existe.”
Da parte que me toca, resta-me agradecer ao DN e ao André Macedo o facto que criaram, que me deu tema para a minha crónica de há 15 dias. Agradeço também terem demorado duas semanas a corrigir, o que me deu tempo para escrever uma segunda crónica, reforçando os argumentos da primeira. É verdade que a citação errada foi assumida como certa pelos canais de comunicação do PSD, que a difundiram, e também é verdade que houve muitos papagaios que, nas semanas seguintes, defenderam a tese do roubo com unhas e dentes. Mas, obviamente, os artigos deixam de representar qualquer crítica ao que Pedro Passos Coelho tenha dito. Ficam apenas a servir de pedagogia a muitos dos seus apoiantes. Continua a não fazer sentido falar em legislatura derrubada — não foi o caso, a legislatura mantém-se de pé —, mas percebe-se que Passos Coelho queria dizer que o seu Governo foi derrubado. Fica aqui o meu reparo, feito em artigo que tem o mesmo destaque que os originais.
PS. Tinha prometido aos meus leitores que não voltava a este assunto, mas compreenderão que perante este desmentido tinha mesmo de o fazer. Para a semana, espero regressar aos temas que tanto vos agradam, como por exemplo o relatório de auto-avaliação do FMI.