Donald Trump ganhou a eleição presidencial de 2024, no colégio eleitoral e no voto nacional, e com os votos que angariou para o Partido Republicano conquistou a maioria no Senado e está a caminho de obter o mesmo resultado na Camara dos Representantes. Tem, até agora, apurados a seu favor, na votação para presidente, 73 milhões de votos contra 68 de Kamala Harris.

Ganhou tendo por adversária uma candidata que recolheu quatro vezes mais fundos de campanha do que ele, provenientes das grandes empresas capitalistas americanas, que teve a comunicação social universalmente a seu favor e que foi esmagadoramente apoiada pelo star system norte-americano.

Várias foram as razões que explicam o que aconteceu.

Talvez a primeira tenha sido a de que o Partido Democrata andou a brincar com o eleitorado americano e pagou por isso.

Primeiro, tentando fazer passar Joe Biden para mais um mandato, quando o ainda Presidente já há muito se encontra num estado de decrepitude física e mental, que já não deixa quaisquer dúvidas sobre a sua incapacidade para se manter lúcido, e se calhar vivo, por mais quatro anos na Casa Branca. Sendo assim, por que (lhe) fizeram isto? Quem fez isto? Para que fizeram isto? Por outras palavras: quem manda, hoje, verdadeiramente no Partido Democrata e no governo dos EUA? E quem estaria interessado em manter essa tão pouco democrática e nada transparente situação por outros quatro anos?

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Depois do debate com Trump, percebendo que Biden não aguentaria a campanha, tiraram-no apressadamente e aos empurrões de cena, contra o que era a sua vontade, e arranjaram dois verdadeiros folgazões para o substituírem. Durante todas a campanha, Kamala e Waltz só se riram, embora não tivessem razões para isso: a economia americana está mal, a inflação, infelizmente, vai muito bem e o mundo, que os EUA supostamente deviam policiar, encontra-se num caos a ameaçar uma terceira guerra mundial. Quando os vi, aos dois, a macaquearem-se na convenção democrata, aos risos e a gesticularem grotescamente um para o outro e ambos para a assistência, escrevi em vários sítios que me parecia uma atitude horrorosa essa de levarem o estilo Mick Jagger para a política presidencial americana. Eloquentes sábios responderam-me, na altura, que aquele era o modo «normal» de fazer política nos EUA. Contudo, não me lembrava de ver Reagan, Bush pai e Bush filho ou Clinton em semelhantes figuras, mas certamente seria erro meu. Como se viu na noite das eleições.

E de que se riam eles, afinal? Por que se sentiam tão animados num país onde o povo manifestamente não parece comungar desse mesmo espírito? Um povo que sente e teme a economia, a inflação e a guerra? Não tenho resposta certa para isso, mas provavelmente terá sido o enlevo do apoio das grandes figuras da elite americana, como Obama, de Niro, Katy Perry, Mick Jagger (o próprio), Lady Gaga, Beyoncé, Taylor Swift, Bruce Springsteen, Billie Eilish, Eminem, Olivia Rodrigo, George Clooney, Jennifer Anniston, etc., etc., etc., que os fez perder a noção da realidade. Este desfile de honoráveis figuras a transportarem Kamala num andor também não a ajudou e talvez a tenha prejudicado gravemente, porque fez o eleitorado perceber que, por si só, a candidata democrata valia muito pouco. Enquanto isso, quase paradoxalmente, Trump, qual moderno tribuno da plebe, foi para o meio do povo e dos descamisados, como, aliás, já tinha feito com sucesso em 2016, sem que os seus adversários tivessem compreendido a lição. Os resultados estão à vista, desde logo com a vitória em sete estados do Rust Belt.

Durante a campanha, Kamala Harris revelou uma imensa fragilidade intelectual: fugia dos temas que não lhe interessavam, como a economia, nada disse sobre a guerra da Ucrânia e, sobre a tragédia do Médio Oriente, balbuciou que tudo faria para lhe pôr fim. Fazia lembrar uma candidata num concurso de misses: “O que nos deseja dizer?”; “Que quero o paz e o amor no mundo!”. Como é que esse mundo chegou ao estado em que está e porque a administração de que foi vice-presidente não foi capaz de fazer melhor, é que ela nunca tentou explicar, fugindo disso também. Compreensivelmente, aliás.

Neste contexto tão claro das coisas, permanecer em “explicações” cabotinas sobre Trump, de que ele é um troglodita que não sabe o que faz, é, no mínimo, risível. Trump é um magister populi com princípios simples, mas claros e com meia-dúzia de ideias e convicções na cabeça. Frequentemente não são as minhas, desde logo, o protecionismo económico que defende e uma relativa animosidade em relação à Ordem Internacional Liberal, que, ao contrário dele, sempre me entusiasmou. Mas são as suas convicções e, ao que parece, as da maioria do povo americano.

Apesar do muito que nos queixamos de Trump e do seu alegado primarismo, em Portugal também cá tivemos o nosso Donald Trump: chamava-se, chama-se, Alberto João Jardim, e durante décadas dividiu o país em amores e ódios. Pertence ao partido que está no governo, onde ainda é endeusado por muitos sectores, e permaneceu, democraticamente, 40 anos no poder.

Claro que há outra forma de ver as coisas, a de que os americanos não merecem as “elites iluminadas” que Deus lhe deu. São uns ingratos, em suma, que pagarão cara a ofensa, com o governo tresloucado que, nesta forma de ver, certamente Donald imporá ao país. Ou melhor, são ingratos e masoquistas, porque Trump já os tinha governado por quatro anos. Ao que parece, gostaram tanto de apanhar, que quiseram agora repetir a dose.

Acontece que nem as coisas estão tão bem como os inimigos de Trump presumem, nem estavam tão mal em 2020, como nos querem convencer. E, repito: nunca estivemos tão perto de uma nova guerra de proporções mundiais como por estes dias e o melhor que Kamala tinha para oferecer, a este respeito, era manter as políticas que nos conduziram até aqui. Donald Trump, pelo menos, admitiu a necessidade de negociar e foi o único candidato a dizer que é necessário pôr cobro a essa guerra, como, aliás, também à do Médio Oriente. Não o fará em 24 horas, como a sua retórica explosiva o levou a dizer, mas o facto de estar movido por essa intenção é muito mais esperançoso do que presumir que a Rússia se pode vencer no seu território. Aliás, bastará conhecer um pouco de história e saber o que foi a ascensão e queda de Napoleão e de Hitler para entender as proporções do disparate.

Aproveitando a dimensão histórica desta circunstância que nos encontramos a viver, vale a pena acrescentar algumas breves reflexões finais.

A primeira é que as sociedades ocidentais têm vindo a encaminhar-se num sentido de enorme intolerância para com o outro, para com aquele que não pensa como nós. A atitude corrente é a da desqualificação do adversário, transformado-o em verdadeiro inimigo. Ele é o «fascista» (até a Kamala caiu nesta), o «troglodita», o «burro e imbecil», o «deficiente mental», o «ignorante», o «aldrabão» e isto para ficarmos somente pelos epítetos desqualificadores mais comuns e ligeiros. O aristocratismo pretensioso desta atitude ignora os valores humanos mais basilares, desde logo o princípio geral da igualdade dos seres humanos e do que deverá ser a comunhão da sua humanidade.

Ao longo dos já muitos anos que levo, acreditem-me, nunca conheci ninguém verdadeiramente «burro» nem absolutamente «genial». Com atributos, qualidades e defeitos relativamente parecidos, todos somos semelhantes, temos padrões comportamentais e objetivos de vida que não são completamente discrepantes uns dos outros. No fim de contas, na nossa fragilidade e insignificância, somos todos humanos, nascemos, vivemos e morremos, pelo que um módico de humildade e de tolerância para com o outro nos faria muito bem. E é mesmo cada vez mais necessário, para não transformarmos as nossas sociedades em sociedades de intolerância e radicalismo, desonrando a herança do Iluminismo.

Em 1899, Rudyard Kipling, escritor e poeta inglês que ficou popularizado, entre outras obras, pelo famoso livro The Jungle Book (1894) e o meu preferido The Man Who Would Be King (1888), escreveu um poema com o nome The White Man’s Burden (inicialmente chamara-se The United States and the Philippine Islands), que exaltava a missão dos povos brancos, dos EUA e da Europa, na missão civilizadora dos «new-caught, sullen peoples», como nesse poema escreveu. Era um trabalho penoso e difícil, mas, como dizia o outro, alguém tinha de o fazer, alguém se tinha de sacrificar. Esperemos que a Europa não desenvolva, agora, a ideia de ter de educar os americanos no voto. No fim de contas, os EUA são a mais velha democracia do mundo, como Alexis de Tocqueville, um sensato europeu da primeira metade do século XIX, nos ensinou. Sugiro a leitura do seu livro A Democracia na América para percebermos melhor esse país e a sua forma de ver a política. E, já agora, também recomendo o seu O Antigo Regime e a Revolução, para percebermos a nossa…