O enorme apreço que mantenho pela pessoa de Joseph Ratzinger/Bento XVI e o profundo e sincero respeito que devo, enquanto católico que procura manter-se fiel à sua Igreja, ao Papa Francisco, levam-me a alertar para o perigo que representa o filme Dois Papas, do realizador Fernando Meirelles, estreado na Netflix a 20 de Dezembro e dias antes nos cinemas; e a defender, dentro das minhas possibilidades, a pessoa do Papa Bento. Não consigo calar a injustiça cometida contra a honra do Papa Emérito, mesmo que, com este comentário, publicite ainda mais o filme.

Vi o filme (por enquanto, uma só vez) já era madrugada, aderindo ao desafio do meu filho. À medida que me fui envolvendo na narrativa e nas belas imagens – o filme, de um ponto de vista cinematográfico, é muito atraente: os actores são óptimos, a fotografia belíssima, o guarda-roupa impecável, a montagem com excertos de imagens reais muito interessante e habilidosa, o intimismo de algumas cenas, chega mesmo a ser comovente, etc. – fui-me dando conta de quão perigosamente enganador ele é.

De facto, sendo o filme muito envolvente e até com alguns bons diálogos, pela intensidade humana e dramaticidade que atingem, embora totalmente ficcionados, é levianamente injusto e até falso na caracterização do Papa Bento e obviamente benévolo com o cardeal Bergoglio a quem se quer, claramente, fazer o “bom da fita”, confrontando-o com um claramente “mau”, neste caso, Bento XVI. E isso, não é bonito para ambos.

Em relação ao então cardeal Bergoglio, penso que o autor do guião não o deixa nada bem, particularmente na cena em que este ouve em confissão o então Papa, Bento XVI. O misericordioso e compassivo Bergoglio – e agora Papa Francisco, que nos tem sido dado a conhecer – no filme, não se porta nada assim com o seu penitente: ao contrário, fica até muito mal na cena, pois não é credível nele a atitude de escandalosa surpresa perante a confissão de Bento, nem uma tal rigidez na reacção, pelos modos como protesta, reclama e admoesta o pecador…

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E aquele fugaz aviso no início da versão apresentada pela Netflix, «Inspired by true events / Inspirado em eventos verdadeiros», só me fez trazer à memória outras obras de absoluta ficção que se querem fazer passar por verdadeiras e históricas, mas que distorcem completa e intencionalmente o verdadeiro carácter dos personagens assim como os factos da História. E o teaser do filme, legendado em português, insiste que é «Inspirado em uma história real» (sic). Mas o contexto do confronto é tudo menos real: nunca o cardeal Bergoglio se reuniu com o Papa Bento XVI, em prolongados diálogos, antes da eleição do seu sucessor; nunca, obviamente, o Papa Bento antecipou a Bergoglio a intenção de resignar; e muito menos vaticinou e augurou que o seu sucessor fosse o cardeal Bergoglio.

O autor do guião, Anthony McCarten, já tinha aliás editado um livro sobre a mesma ficção, cuja tradução em português foi recentemente publicada pela editora Objectiva (ISBN: 9789896659172) repetindo a enganosa frase mágica na capa, onde se anuncia como «A história verídica que inspirou o filme» (sic); e cuja sinopse na Internet afirma, também mentirosamente, ser sobre «a história fascinante de dois homens muito diferentes a viver sob o mesmo tecto e de uma transferência de poder sem precedentes» (sic) – “transferência” essa que, sabe-se, nunca poderia ter jamais ocorrido e é impensável, conhecendo-se a biografia de Ratzinger.

No filme, não faltam, sobre Bento XVI, as estafadas referências aos chavões do «God’s Rottweiler» ou do «Dour traditionalist» que prefere o Latim; do homem com mau-feitio, algo obcecado; nem aos sapatos vermelhos; nem a ridícula alusão, em relação a um Papa, do homem que não podia sorrir ou dançar Tango; ou a do neurótico introvertido que prefere sentar-se à mesa sozinho, e vive apenas num mundo de livros e da escrita, etc. Isto, contraposto a Bergoglio, um homem popular e comum, que desce ao pasto onde vivem as esfomeadas ovelhas, que sabe dançar o Tango, usa sapatos velhos, gosta de futebol, come pizzas takeaway, que é afável e benevolente, etc.

É-nos impingida uma imagem de Bento XVI onde não se lhe reconhece nenhum traço do seu génio – creio que um dos maiores vultos europeus do trágico século XX. Estão completamente ausentes deste filme e do seu pseudo-personagem, a sua timidez ou modéstia, tão longe da agressividade de um Rottweiler; nem aparece um traço do seu génio intelectual; nem uma referência a uma prestigiada carreira académica; nem um aceno à sua paixão pela busca da verdade filosófica e teológica ou à defesa da doutrina católica, num tempo de aberta contestação e manifesta desobediência de tantos padres e até bispos; e ainda menos, a atitude grave institucional, bem consciente da mais elevada Cátedra eclesial que tão dignamente ocupou…

Todos os seus grandes temas: o amor, a verdade na caridade, a razão e a fé, a beleza, a sacralidade e o verdadeiro espírito da liturgia, a falta de fé que grassa, a urgência da reconversão do Ocidente, etc., etc., tudo isto fica ausente, é apagado, para que fiquemos com o retrato de um personagem rígido, amargurado, quase derrotado pela vida, e, pasme- se, onde não falta até uma suspeita crise de fé…

E o autor do guião e do referido livro, ainda teve a lata de se referir ao filme como: «It’s meant to be fair. It’s not meant to whitewash anyone […]». Meu Deus!

Mas como se as omissões não bastassem, note-se quão enviesado é este filme de reles e perigosa propaganda, que ainda se permite ser objectivamente insultuoso. Na cena em que os dois personagens se confessam um ao outro – já atrás me referi a quão mal é tratado o próprio Bergoglio – a ficcionada confissão do Papa Bento sobre o seu comportamento relativamente ao tarado e depravado fundador dos Legionários de Cristo, ao tempo em que tinha sido Prefeito de Congregação para a Doutrina da Fé, é verdadeiramente injuriosa para Ratzinger.

Só não sabe nem não quer saber: foi o cardeal Ratzinger que alterou os procedimentos a aplicar a padres predadores de menores; foi Ratzinger quem, em 2001, autorizou uma investigação às acusações contra o referido fundador dos Legionários de Cristo, o padre Marcial Maciel Degollado (1920-2008), que prosseguiu após a sua eleição para a Cátedra de Pedro, tendo-o até demitido, depois de concluída a investigação a que se seguiu uma profunda reforma dos Legionários, que Francisco continuou. E foi Ratzinger, já Papa, quem expulsou centenas de outros padres do estado clerical, pelo mesmo motivo.

A ideia que o filme, nesta abjecta cena da confissão, nos quer deixar, mentindo descaradamente, é que Ratzinger foi, no mínimo, negligente neste tenebroso escândalo da pedofilia e abuso sexual de menores. Não vale sequer a pena, a respeito deste tema, contrapor conhecidas atitudes do Papa Francisco. Pretende-se que fique assim como que completo o retrato do vilão Ratzinger/Bento XVI – o “mau da fita”.

É justo o que afirma em comentário a este filme, o padre jesuíta Nelson Faria, no Facebook:

«[…] Os protagonistas deste filme são caricaturas dos nossos Papas Francisco e BXVI. Principalmente Bento XVI, pois se quanto a Francisco é notório o trabalho de copy-paste de alguns dos seus soundbites (e a apresentação da sua biografia, ainda que novelesca, tem o seu mérito), há muito pouco de real quanto ao BXVI representado. Não só o seu pensamento merecia outra apresentação, mas sobretudo há duas falhas gravíssimas, crassas e injustificáveis: o ambicioso Ratzinger; [e] o compactuante com abusos [sexuais] BXVI. Dois factos:

  1. É sobejamente conhecido o desejo de longa data de Ratzinger de se retirar de Roma para se dedicar em exclusivo à teologia.
  2. BXVI é o grande responsável pelo início da reacção da Igreja no tema dos abusos, em particular o caso do P. Maciel».

E também o padre Andreas Lind, confrade jesuíta do anterior, apesar da benevolência geral do seu comentário em relação ao filme, escreveu no portal dos Jesuítas em Portugal, Ponto SJ, o seguinte:

«O problema do filme, a meu ver, é deixar transparecer um dualismo, um tanto ou quanto maniqueísta, entre os dois personagens e o que eles supostamente representam». […]

«O enredo de Meirelles sugere também um ditado, supostamente célebre, pelo menos entre os homens de Igreja, ou talvez entre os alemães, segundo o qual “Deus corrige sempre um papa presenteando outro papa ao mundo.” Afirmações como estas não mostram apenas o lado ficcional do filme: tais declarações explicitam o seu carácter ideológico». […]

«A preferência que o filme atribui a Bergoglio é, portanto, notória, nem que mais não seja pelo tempo atribuído à biografia do atual Sumo Pontífice, em claro contraste com os escassos minutos dedicados à vida do seu predecessor».

«E, para além do dualismo ideológico que os separa radicalmente, o carácter das duas personalidades também contrasta profundamente, como se Bergoglio, aquele que protagoniza uma autêntica mudança na Igreja, fosse o humilde, enquanto que os outros, os da Tradição, seriam sobretudo arrogantes, ambiciosos ou até rudes». […]

«Podemos “gostar do papa” Francisco, como Meirelles afirma. Mas, para expressarmos o nosso apreço por ele, não precisamos denegrir a imagem do predecessor.

Enfim, trata-se de um filme que promete ser um bom candidato a uma polémica semelhante à suscitada pelo livro de Dan Brown, The Da Vinci Code, aparecido em 2003, traduzido em mais de 40 línguas, entre as quais o português, embora cheio de incorrecções históricas, e que gerou justificadamente muita celeuma nos meios católicos.

Ao guionista Anthony McCarten, assim como ao realizador Fernando Meirelles, ficar- lhes-ia muito bem um pedido de desculpas ao nonagenário Papa Emérito.