Apesar de não ser consensual entre os historiadores, creio ser possível afirmar que a destruição da “Casa da Sabedoria” – a Grande Biblioteca de Bagdad, considerada o centro intelectual daquela cidade – simboliza o fim da Era Dourada do Islão. Seria no pérfido ano de 1258 que o império da Mongólia viria a tomar Bagdad, trazendo consigo a violência e o fogo que reduziria a cinzas séculos de progresso e conhecimento acumulados.
Por essa altura, o mundo ocidental encontrava-se ainda mergulhado no obscurantismo da idade média, bem longe de ser o espaço de liberdade e desenvolvimento que hoje conhecemos. Apenas séculos mais tarde, a partir do Renascimento, a liderança do Ocidente viria a afirmar-se no contexto global, mantendo-se, por enquanto, até aos nossos dias.
Todavia, a emergência de uma coordenação entre diversos centros de poder com influência regional/mundial – e.g. Rússia, China e Irão – coloca esse estatuto sob forte disputa. Por muito que a vontade em contrariar os ditames do mundo desenvolvido seja, per se, uma argamassa consistente, o entendimento entre estes países é potenciado por uma certa afinidade na forma como encaram a organização das sociedades.
Perante um confronto cada vez mais evidente entre este reforçado eixo autoritário e um ocidente democrático, não falta quem aponte as impurezas da democracia como motivo para dar lugar a uma nova ordem mundial, com outros valores e assente noutros princípios. E, por paradoxal que possa parecer, são cada vez mais as vozes de entre nós que manifestam a sua simpatia de forma aberta e descomplexada por estes regimes, quando a possibilidade de se expressarem livremente estaria vedada nas sociedades que tanto elogiam.
É certo que as nossas democracias já conheceram melhores dias, mas não me parece crível que os regimes autoritários se lhes possam sobrepor de forma meritória, uma vez que a existência de um “ditador benevolente” – conforme batizado por Platão – não é compatível com a natureza humana. Mesmo considerando a combatividade e a coordenação deste eixo autoritário, creio, no entanto, que a principal causa para o risco do declínio ocidental germina no seu seio.
Numa análise superficial, poderíamos apontar a corrosão das instituições democráticas, sob a batuta de uma classe política fragilizada, como raiz deste problema. Porém, ainda mais profundo que isso, é a grande mudança no relacionamento entre seres humanos que pensam de forma diferente. Fenómenos como as “guerras culturais”, a cancel culture, ou a tentativa de proibir determinadas expressões são os sintomas de uma patologia social que, à falta de melhor denominação, chamarei de tribalismo. O resultado dessa enfermidade traduz-se num retrocesso da saudável confrontação de visões distintas que, em última instância, é chave para o virtuosismo de uma democracia.
O regresso ao tribalismo tem conduzido ao resultado oposto, razão pela qual considero estar na génese da nossa reconhecida perda de fulgor democrático. A salutar troca de argumentos ou a capacidade de entendimento entre forças de diferentes quadrantes deram lugar a uma crescente radicalização, que torna a tomada de posições num exercício exaltação de divergências, ao invés de um processo construtivo e coletivo na busca da verdade ou das melhores respostas.
Mais preocupante ainda, é o facto de várias universidades de referência terem um papel central neste clima de polarização social, promovendo guerras culturais e fomentando um espírito de intolerância nas suas comunidades estudantis. Estas instituições deveriam ser, por excelência, baluartes na promoção do debate franco e aberto de ideias, com vista ao progresso científico e à procura pelo conhecimento, formando futuros líderes e profissionais munidos de um espírito crítico robusto e capazes de pensar pela sua cabeça.
Neste particular, o país que ainda é visto como líder do mundo livre tem estado em claro destaque. As recentes manifestações de antissemitismo em universidades como Columbia, Harvard ou Yale – nesta última, alguns estudantes quiseram barrar a entrada no campus a colegas judeus – deveriam ser impensáveis em locais focados no progresso científico e social. Por muito que a conduta do Estado israelita possa e deva ser condenada, é inadmissível que as universidades promovam a discriminação de pessoas com base na sua origem ou confissão religiosa.
Estas manifestações de extrema intolerância são parte de uma tendência muito bem retratada pela revista The Economist num artigo intitulado “Poisoned Ivy”. Para além das acusações de antissemitismo, as universidades americanas de topo são também criticadas por abandonarem critérios meritocráticos para selecionarem os seus alunos e pelo clima de limitação à liberdade de expressão que têm promovido.
Geridas por estruturas burocráticas, cresce a convicção de que estas instituições estão cada vez mais desligadas da realidade envolvente, algo que em última instância se traduz na diminuição de donativos e apoios que recebem. Há dois indicadores particularmente sintomáticos. Em primeiro lugar, a perceção da qualidade da sua investigação tem diminuído, por oposição a várias universidades chinesas. Em segundo lugar, a percentagem dos seus funcionários que não partilham de ideologias de extrema esquerda ou liberais tem diminuído paulatinamente ao longo dos anos de forma expressiva.
Ao invés de amenizarem o clima de fragmentação no país do “Tio Sam”, focando-se em fomentar um debate elevado e construtivo, estas universidades têm promovido exatamente o oposto, prestando um péssimo serviço à sua comunidade e à democracia. E, por maior ou menor nexo de causalidade que se possa estabelecer, não deixam de simbolizar o declínio percecionado no mundo livre, cada vez mais embalado pelo canto da sereia dos populismos e autoritarismos.
Ainda que muito disto se passe do outro lado do Atlântico, não pode de forma alguma ser ignorado. Por paradoxal que possa parecer, depois de elegermos em março os nossos deputados à Assembleia da República e estando em vias de regressar às urnas para escolher os nossos representantes na Europa, nenhum destes atos eleitorais terá tanto impacto no nosso futuro quanto as eleições presidenciais americanas, nas quais não teremos voto na matéria.
O regresso à sala oval de um Presidente que ignora a importância da estabilidade global e que não se importa de conceder avanços ao eixo autoritário pode ditar o declínio irreversível do mundo livre. Se tal acontecer, Donald Trump terá muito a agradecer ao forte contributo das universidades americanas na promoção das guerras culturais que insuflaram o seu espaço mediático. Por muitos fatores de diversa ordem que possam concorrer para o fim da era em que vivemos, é no exemplo de intolerância dos que deviam ser campeões da liberdade de expressão que encontramos o retrato perfeito do regresso ao obscurantismo da idade das trevas.