No bar da praia discute-se o fascismo dos outros. O racismo dos outros. O Cavani dos outros. A vida dos outros. A economia portuguesa, congenitamente frágil, essa, regista a maior queda de sempre (16,5%) e o seu endividamento atinge os 360% do PIB. Um quarto de milhão de portugueses esperam por uma cirurgia, dos quais 100 mil há mais tempo do que aquilo que a sua patologia recomenda. A pobreza chegou onde nunca tinha chegado e mais de 380 mil pessoas foram ajudadas pelos bancos alimentares.
Os desenhos que as crianças fizeram em Março, com arco-íris e hashtags do tipo #vaificartudobem, amarelecem nas janelas sob o sol de Agosto.
Ao leme, ninguém. Se alguém arrisca erguer a voz é destratado pelas autoridades.
O leitor mais distraído poderá pensar que eu caí em cima do teclado, por excesso de whisky ou por falta de sangue nas artérias, e que o título deste artigo é um erro de escrita. Infelizmente não é. O país está convencido que temos um Governo que é uma geringonça. Ora, uma geringonça, ainda que trapalhona, move-se. Como se viu nalguns momentos desde 2015, moveu-se para trás, mas moveu-se. Essa não é, porém, a sua mais marcante característica. O “Governo” (as aspas não são excesso de escrúpulo, nem liberdade de estilo) é antes um floccinauciniilipilificador (lê-se floc.ci.nau.ci.ni.i.li.pi.li.fi.ca.dor): considera inútil tudo o que não lhe convém. E, como sabemos, tudo o que não seja proteger a sua endogamia e assegurar a sua sobrevivência, o alfa e ómega deste PS, não lhe convém.
Floccinauciniilipilificar é uma palavra que não existe no dicionário português, mas como estamos a falar de um Governo que também não existe em Portugal, presumo que não faça mal usá-la. Para sermos rigorosos, a palavra não existe em lado nenhum, ainda que em Inglaterra, sobretudo entre antigos alunos de Eton, seja usada para designar o acto de considerar as coisas inúteis (Jacob Rees-Mogg, o inefável MP Conservador, usou-a aqui). A “palavra” é uma sequência de palavras latinas (flocci, nauci, nihili, pili, …) inscritas por esta ordem na gramática de Latim do colégio. E o que para aqui interessa, é que a importância que os jovens etonians lhe atribuem é a mesma que o “Governo” atribui ao que não lhe interessa.
Vamos a uma aula prática? Há um roubo de material militar num paiol do Exército e pedem-se responsabilidades? Há uma encenação criminosa de devolução do material roubado, com o alegado envolvimento do ministro da tutela? A Protecção Civil, assaltada nos seus altos cargos meses antes pela trupe do Largo do Rato, falha clamorosamente na protecção de vidas nos incêndios de Pedrogão? A reconstrução de habitações e o suporte às famílias vítimas da tragédia subordina-se aos pequenos poderes nepotistas e clientelares do PS? Floccinauciniilipilifica-se.
Mais recentemente: um secretário de Estado da energia insulta publicamente, no Twitter, um cidadão que expressa uma opinião divergente da sua? Os profissionais da cultura veem-se a braços com uma perda de rendimento dramática, impedidos de trabalhar, a menos que seja na Festa do Avante, e a ministra da Cultura, confrontada com o assunto, convida os jornalistas para um drink de fim de tarde? Floccinauciniilipilifica-se.
Mais estruturalmente: o programa do Governo tem um longo capítulo dedicado à Boa Governação – a sério, não estou a gozar – em que fala de “investimento na qualidade dos serviços públicos” e num “SNS mais justo e inclusivo que responda melhor às necessidades da população”. Se alguém vem falar no aumento terceiro-mundista dos tempos de espera por consultas e cirurgias, ou no aumento anómalo, extra-Covid-19, da mortalidade registada, floccinauciniilipilifica-se. Nos capítulos “Melhorar a qualidade da democracia” e “Valorizar as funções de soberania” fala de promoção da “literacia democrática e a cidadania”, num “combate determinado à corrupção” e numa “Justiça eficiente, ao serviço dos direitos”. Se alguém vem falar na substituição de Joana Marques Vidal, ou na suspensão dos debates quinzenais no Parlamento, ou na desqualificação da magistrada escolhida por um júri internacional para a Procuradoria Europeia, nomeando o segundo classificado, ou na manipulação inenarrável da CRESAP e a colonização absoluta da máquina do Estado, floccinauciniilipilifica-se.
Já agora, aguentem o riso ou o choro, consoante a vossa índole: o 2.º desafio estratégico do Programa do Governo, a Demografia, tem como subtítulo “Por um país com mais pessoas, melhor qualidade de vida e onde os cidadãos seniores são tratados com dignidade”. Aqui a piada (de humor negro) faz-se sozinha.
Floccinauciniilipilificando-se para o Programa do Governo e, já agora, para o próprio Governo, já que não encontrou lá ninguém capaz de realizar a tarefa, o Dr. Costa contratou o Dr. Costa Silva para definir a visão de futuro para Portugal. E se ainda não aconteceu, não tardará muito para que se floccinauciniilipilifique para este plano também. Esta forma contingencial e “poucochinha” de lidar com os destinos do país, fazem-me sempre lembrar o célebre livro de Paul Watzlawick. O fundador do Mental Reasearch Institute de Palo Alto escreveu um livro com o subtítulo Em Busca da Infelicidade. O título? A situação é desesperada, mas não é séria. Estaria a falar de Portugal? Seguramente.Porque, com excepção dos seus votos e dos seus impostos, se há algo que esta gente verdadeiramente considera inútil, são os portugueses. A nós resta-nos continuar a ser floccinauciniilipilificados. A pergunta é: até quando?