Há uma velha anedota sobre a democracia que começa assim: era uma vez dois lobos e um cordeiro que vieram para jantar. O fim da anedota fica ao vosso critério. Os estatísticos dirão que cada lobo comeu meio cordeiro. Os cínicos dirão que um dos lobos comeu o cordeiro sozinho. Os devotos de Santo Agostinho dirão que o cordeiro, depois de imolado, voltou como leão.

Já os académicos de Economia e Escolha Pública usarão a anedota para mostrar que – tal como a senhora Thatcher dizia do dinheiro público – não existe um bem comum decidido por agentes imparciais. E que, no limite, as minorias, em política, não podem escapar ao poder das maiorias. Ou seja, em qualquer cenário, o cordeiro provavelmente acaba comido.

Não estou a especular, a ideia não é minha. James M. Buchanan, galardoado com o Nobel da Economia em 1986, explicou isso. No fundo, dedicou-se a explicar os riscos dos mecanismos de exploração nos sistemas eleitorais, do interesse próprio dos políticos e dos burocratas e do poder dos grupos de interesse; e a sublinhar como os limites impostos pela Constituição têm um papel essencial na mitigação desses efeitos, potencialmente nocivos, na tomada de decisão em assuntos públicos.

Vem isto a propósito do clima político que se vive um pouco por todo o lado; até em Portugal, onde estas coisas chegavam sempre mais tarde. Hoje, na arena política digladiam-se lobos: os que querem ilegalizar, calar, diminuir, os tais que a senhora Clinton baptizou de basket of deplorables, os que apelam – no sentido figurado, claro, deste lado é sempre figurativo – à morte do homem branco e ao suicídio de Trump; e os dos homens “de bem”, que querem excluir, mutilar, encarcerar para sempre, mandar para a sua terra, cercar e estigmatizar “os outros”.

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Perdi alguns de vós lá atrás, na parte em que o cordeiro é comido, não foi? Calma, não tem de ser assim, apesar de haver quem até possa querer justificar a vitória da maioria e a aniquilação das minorias com a “democracia”; as aspas não são destaque de conceito, antes depreciação do mesmo. Disse depreciação, porque a diferença entre o que conhecemos vulgarmente por democracia não é apenas o poder da maioria (rule of people), mas também a protecção das minorias (rule of law): a democracia liberal. É por isso que este debate político, alimentado a ódio e apenas feito de antagonismos, aliado à erosão dos mais elementares mecanismos de salvaguarda constitucionais, transforma o que deve ser tendencialmente o espaço da razão num caldo fervilhante de emoção. Não um espaço onde se debatem ideias de construção e projectos de solução para problemas do país, mas uma batalha campal de tribalismos onde se aniquila o outro que se detesta.

Voltemos por instantes a Buchanan e à Economia e Escolha Pública. Para a escolha pública, para a tomada de decisão política, a riqueza do debate e a forma como as opções são apresentadas não são detalhes, são centrais. O exemplo clássico é o da construção de uma estrada. Um referendo que use maioria simples, unanimidade ou maioria qualificada terá resultados diferentes, processos de negociação diferentes e salvaguarda de interesses diferentes. E isto, não sendo simples, seria óptimo se fosse só isto.

O problema é que o espaço público é limitado; e o custo da atenção que os eleitores estão dispostos a pagar a troco de apenas um voto pouco atractivo. É por isso que, se no lugar de discutir a estrada, ou o SNS, ou o modelo de ensino, ou as prioridades orçamentais, ou a política fiscal, ou a simplificação administrativa, o país se entretiver a discutir as “virtudes” tribais e os impropérios cuspidos “ao outro”, e a transformar as posições políticas aceitáveis exclusivamente em anti-esquerda, anti-direita, anti-o-diabo-que-nos-carregue, será essa a discussão que ocupará o slot mediático disponível.

É por isso confrangedor, que um país dos mais pobres da Europa, com o SNS a implodir, a separação de poderes fortemente comprometida e escandalosamente escarnecida, desempenhos escolares de novo crescentemente indigentes e a autoridade do Estado a valer menos do que uma imperial e uma sandes na festa do Avante!, se dedique primordialmente a este “debate” público.

Ainda a pensar no cordeiro? Bom, não tenho boas notícias: o cordeiro é o estimado leitor. E eu. E todos. Porque num mundo de escolhas entre pares de ódio e forças destruidoras, até os que se julgavam a salvo, com protectoras peles de lobo, mais tarde ou mais cedo, acabam imolados como cordeiros.

Post scriptum: há ainda uma outra lição, a propósito de lobos e cordeiros, a tirar da Economia e Escolha Pública para Portugal nestes dias. Os eleitores votam muitas vezes tacticamente. Fazem-no, não tanto por lealdade às suas convicções, mas optando por candidatos de quem nem sequer gostam, apenas para permitir a derrota de quem gostam menos. Vulgarmente é designado por voto útil. Num país tão massacrado pela governação do PS – onde os privilégios de poucos são pagos com o sacrifício de tantos -, onde as perspectivas de melhoria não existem para praticamente ninguém e com uma oposição de direita tão tíbia como a que temos, não é de estranhar que haja um número significativo de cordeiros (eleitores), que fartos de serem mordidos pelo lobo no poder (PS aliado à extrema-esquerda), queiram agora alimentar outro lobo (Ventura). Útil seria o PSD e o CDS pensarem nisso.