Por mero acaso ou falta de vontade, nunca até há uns dias tinha visto o filme Jaws, de Steven Spielberg. O enredo da coisa resume-se facilmente: a vila balnear de Amity é assombrada (quase literalmente. Jaws é basicamente um filme de terror em que o monstro é um tubarão em vez de uma qualquer entidade sobrenatural) por um tubarão branco que se alimenta de seres humanos. Primeiro, uma jovem desnudada (talvez um símbolo dos anos 60 e das fantasias da época), e depois uma criança (Spielberg a dar um sermão sobre uma geração de pais que não deram a devida atenção aos seus rebentos?) e dois homens adultos. O chefe da polícia local, Brody (Roy Scheider), o oceanógrafo Hooper (o sempre insuportável Richard Dreyfuss) e o velho caçador de tubarões Quint (Robert Shaw) partem em busca do predador e, após várias peripécias, lá acabam por matar o perigoso bicho.

Pelo meio, têm de enfrentar uma outra ameaça: a relutância das autoridades em tomar as medidas necessárias para lidar com o problema do tubarão assassino. Quando o que restava da primeira vítima dá à costa, Brody decide fechar a praia a banhistas, mas Vaughn, o mayor de Amity, decide que ela deve permanecer aberta. Afinal, estavam no fim-de-semana do 4 de Julho, época alta do turismo na vila, e fechar a praia aos turistas representaria uma ameaça à economia local. “Amity é uma vila de Verão”, argumenta o mayor, e “precisa de dólares de Verão”. Para que eles não deixem de vir, Vaughn não só mantêm a praia aberta, como faz os possíveis para que os visitantes se sintam seguros, minimizando a ameaça do tubarão ou garantindo que um outro animal que fora apanhado era, contra todas as evidências, o responsável pelas mortes em Amity.

Nos últimos tempos, a personagem do mayor de Jaws e as suas decisões têm sido comparadas a Trump e à sua postura displicente no “combate” à pandemia da Covid-19. Mas aquilo de que me lembraram foi da forma como António Costa (e por arrasto, Marcelo Rebelo de Sousa) e o Governo português começaram agora a lidar com a Covid-19: embora a maior parte das críticas à actuação do Governo venha de quem considera que Costa e seus subordinados exageraram no “confinamento” e escolheram “reabrir” tarde e menos do que deveria ter acontecido, começa a ficar cada vez mais claro que o principal problema do Governo (e do Presidente) é o de não reconhecer a gravidade da situação. E não a reconhecer por sentir que não o pode fazer.

Veja-se o exemplo da Final Eight da Liga dos Campeões: como a Amity do filme, Portugal e a sua economia são extraordinariamente dependentes das receitas do turismo. É, digamos, um país de Verão, e precisa de euros de Verão. Para os receber, precisa, como Amity precisava, que os turistas se sintam seguros ao visitar o país. A atribuição, por parte de uma organização internacional – mesmo que não propriamente conhecida pelo seu bom senso ou transparência neste tipo de decisões – da realização de um evento desta natureza e com este mediatismo é, sem dúvida, uma enorme ajuda na propagação da ideia, por esse mundo fora, de que Portugal é um sítio que pode ser visitado sem se correr grande risco.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Acresce que essa mesma decisão ajuda também a passar essa ideia cá dentro: ao contrário do que a propaganda de todos os nossos Governos nos tenta convencer, Portugal continua a ser um país economicamente frágil e, como seria de esperar, o impacto da pandemia e das medidas tomadas para a enfrentar não o fortaleceram. Por isso mesmo, o Governo sabe, melhor do que ninguém, que a sociedade portuguesa não aguentaria muito mais tempo em “confinamento”. Mas sabe também que o mero decreto da “reabertura” não seria suficiente para fazer a economia regressar ao normal. Afinal, muitas pessoas começaram a “confinar-se” antes até de as autoridades o terem tornado obrigatório. Daí a conversa do “milagre português”, daí a presença de Costa e Marcelo em vários eventos públicos e daí o directo televisivo a anunciar “a Champions”: como o mayor Vaughn, Costa e Marcelo precisam de nos convencer de que está tudo bem, para que nós não nos continuemos a comportar como quando estava tudo mal e para que o inevitável descalabro económico decorrente das necessárias medidas de saúde pública tomadas há uns meses não se prolongue e agrave.

O risco dessa atitude é o mesmo que o da postura do mayor Vaughn: ao manter as praias abertas e ao dizer que a ameaça do tubarão estava ultrapassada, Vaughn fez com que as praias se enchessem e que mais pessoas fossem comidas pelo tubarão; ao passarem a imagem de que Portugal tinha conseguido um “milagre” com a Covid-19, Costa e Marcelo talvez tenham convencido demasiada gente de que não corriam qualquer perigo, abrindo caminho a coisas como a festa de Lagos ou o ajuntamento de Carcavelos e certamente muitos outros de que não chegámos a ouvir falar, ou que ainda estão por vir.

Ao quererem, por razões compreensíveis, criar a sensação que Portugal é um país visitável e que os portugueses estão seguros para “retomar” uma vida “normal” ou perto disso, Costa e Marcelo criaram um igualmente compreensível relaxamento da parte de muita gente, relaxamento esse que, por sua vez e como seria de esperar, criou um aumento do número de infecções um pouco por todo o país, que para além de pôr vidas em risco, coloca também em perigo a percepção de que Portugal é um país pronto a receber estrangeiros em segurança, ameaçando o turismo e pondo em causa a recuperação económica pretendida com os esforços “comunicacionais” do Presidente e do Primeiro-Ministro. Como o mayor Vaughn de Jaws, Costa e Marcelo arriscam-se a ver os resultados da sua propaganda contrariarem essa mesma propaganda. E ao contrário do que acontece no filme, dificilmente seremos salvos por uns quaisquer heróis vindos de um proverbial nada. Pelo contrário, teremos de conviver muito tempo com a ameaça do “tubarão” que nos calhou em sorte enfrentar.