Não tenho nada contra o Sporting. Alguns dos meus melhores amigos são sportinguistas. Mas, até à noite de terça-feira, o único sportinguista do Porto que eu conhecia era o filho dos meus vizinhos do lado que costumava manifestar a sua frustração leonina em alta voz quando os jogos do seu clube eram transmitidos pela televisão (“Caramba [digamos assim], Liedson!”). Desde terça à noite, no entanto, sei que há muitos mais. E pior. Ao contrário dos adeptos do meu clube, que vão festejar os títulos lá longe, para a Avenida dos Aliados e a Praça da Liberdade, os sportinguistas do Porto fazem exactamente como os benfiquistas do Porto: vêm para a beira de minha casa e entretêm-se a andar às voltas na Rotunda da Boavista, a buzinar até altas horas da noite. Já deviam ser duas da manhã do dia seguinte quando finalmente desmaiei, com os ouvidos a zumbir, e umas horas mais tarde, quando acordei e à tempestade tinha sucedido a bonança, o silêncio comparativo parecia o de um domingo de manhã. Tudo tem o seu lado bom: gosto de domingos de manhã, sobretudo às quartas.
Com a idade, e com a providencial ajuda de toda a espécie de erros cometidos no passado, a forma, como dizia alguém, vai-se esvaziando, e é preciso aprender a viver com isso, caminhando no meio-ser através da miríade de coisas do mundo. É verdade que algumas deixam saudades, até as mais insignificantes e ridículas. Como, por exemplo, o contentamento com as vitórias do meu clube e a óptima alegria maligna com as derrotas do Benfica. Hoje em dia, sobra-me pouco dessas aventuras afectivas. Se o Porto ganha, mesmo com um azul céu de Primavera, não me ponho aos pulos. E, se o Benfica perde, o pérfido amarelo esverdeado da maldade desgraçadamente não toma já conta da minha alma por reacção à humilhação do sanguinário vermelho. Que Deus me perdoe, até acho graça ao Jorge Jesus. Se ele ganhar alguma coisa, tomo isso por aquilo que os filósofos chineses chamavam um Mandato do Céu. Há de resto, algo de Confúcio em Jesus (Jorge).
Isto não quer dizer que não haja coisas que me prendam a atenção. Há, e são normalmente as coisas que prendem a atenção à maioria das pessoas. Como, por exemplo, aquela reacção de António Costa, o nosso Grande Bazuco, ocasionalmente Grande Vitamínico, àquele senhor sindicalista que aguerridamente o interpelou em Valença do Minho aqui há pouco tempo. Lembrar-se-ão certamente que Costa se esgueirou prontamente entre os membros da sua comitiva e lançou Pedro Nuno Santos às feras. Houve quem notasse a pouca nobreza do gesto, e eu também não achei aquilo próprio de um herói. Banalmente, foge como o diabo da cruz de tudo aquilo que indique que não recebeu o já referido Mandato do Céu. Mas logo me lembrei de algo que tinha ouvido José Miguel Júdice recentemente dizer na televisão. O que dizia Júdice, que sabe estas coisas todas? Que Costa não despede os ministros, porque precisa deles como bombos da festa. Ou bonecos de tiro ao alvo. Enquanto disparam sobre eles não disparam sobre ele, o que é, compreensivelmente, a principal preocupação de um habilidoso. É para isso, exactamente, que os ministros lhe servem.
Ou, se preferirem a imagem, é como o tiro aos pratos. Costa avisa que vai lançar o prato e, muito lampeirinho, logo se propõe como alvo voador um dos indivíduos que compõem aquela esquisita colecção de disjecta membra que constitui o Governo, que nem a cola que transpira de um ministro tão adesivo como Augusto Santos Silva – uma espécie de Band-Aid que transita das feridinhas de um Governo para as de outro – consegue transformar num corpo compreensível. Uma perna ali, um pescoço aqui, acoli um braço, acolá um pé, e por aí adiante. Alguns membros da corporação, largamente não identificável, distinguem-se por um talento espontâneo. O filosófico João Galamba, por exemplo, pela graciosidade natural da sua linguagem bebida nas mais puras fontes. E o ministro Cabrita, um excepcional talento, por tudo. Tudo, mesmo. Nada do que é errado, da incompetência à grosseria, lhe é alheio. É uma vocação rara, uma encarnação da polimatia da asneira, que serve o Grande Bazuco com afinco, como ele gosta (“um excelente ministro”, declarou ontem). Um prato especial, que, de tão furado que está, não é só para comer uma sopa que não serve. Até um pernil de porco cai pelo alvejado fundo.
Os Portugueses começaram por o conhecer como exímio praticante de um desporto socialista, provavelmente importado da defunta RDA: o roubo do microfone. Pelo menos, é a sua primeira aparição pública de que me lembro. Mas acertou em cheio nessa auroral introdução aos Portugueses. O secretário de Estado Paulo Núncio, do Governo de Passos Coelho, bem queria falar na Assembleia da República, mas Cabrita, que adivinhava que a palavra só pode ser uma e socialista, não o deixava. A mãozinha sapuda, mal o outro abria a boca, corria lesta para o microfone e roubava-o, mostrando a preeminência da mão visível sobre a mão invisível: um testemunho, portanto, contra as veleidades do chamado neoliberalismo. Falo destes inícios promissores da sua carreira porque obviamente ignoro as suas magníficas iniciações, à espera de um estudo aturado do seu cursus honorum, com a devida passagem por Macau (essa eu li), um ritual iniciático imprescindível, para proveito do cidadão comum que aspire a uma vida folgada sem excessivos problemas de vergonha e decência. Em todo o caso, a grosseria estava feliz e eficazmente estabelecida. Faltava a prova cabal da incompetência.
O que este ditoso mortal, a bem da não menos ditosa pátria que o viu nascer, logo demonstrou (sem renegar, longe disso, a grosseria) mal se tornou ministro do Grande Bazuco. Os seus prodígios foram relatados em todos os jornais e não escaparam às televisões. Lembram-se das golas contra o fumo na época dos incêndios, compradas aos colegas do partido? Incendiavam-se ao primeiro isqueiro que se aproximasse a uma légua. Lembram-se do ucraniano Ihor, assassinado pelo SEF, e da forma como Cabrita se arvorou em paladino dos direitos humanos na Assembleia da República a seu propósito? Suponho que estão frescos na memória os detalhes da invasão do Zmar – umas frágeis casinhas coladas umas às outras qualificadas de propriedade de “burguesia média-alta” por um jornal – às quatro da manhã, bem como os meios pela qual se processou, com o complemento indispensável da referência ao CDS como “partido náufrago”. E agora as celebrações do Sporting, em período de pandemia, das quais totalmente se alheou, como se o ministro da Administração Interna – sim, ele é isso! – nada tivesse a ver com o assunto. Um génio, um prato voador lançado pelo Grande Bazuco em direcção às estrelas. Um prato voador grosseiro e incompetente lançado por alguém que colectivamente nos toma por patos rasteiros.
Voltando ao Sporting. Estava eu ainda no meu primeiro internamento num hospital – uns dez dias, ou coisa assim, que anteciparam um mês inteiro, ano e meio depois – quando se deu o ataque a Alcochete. Quer isto dizer que pude testemunhar em casa, durante a convalescença, as variadíssimas e apaixonantes conferências de imprensa do “Bruno”, que demoravam horas e eram seguidas em directo, sem interrupções, por todos os canais de televisão. Sobretudo, pude assistir ao anúncio unânime, por todos os comentadores televisivos, de que levaria ao Sporting um tempo infinito (os cálculos eram uma subtil variação da sofisticada matemática do 4-3-3) para recuperar daquela inominável malfeitoria. E eis que, passados três anos, o Sporting, depois de quase duas décadas de privação, volta às vitórias.
Duas coisas retiro daqui. A primeira é que a sabedoria dos comentadores desportivos não é infinita (a sua inventividade vocabular também se reduziu dramaticamente ao longo dos anos). A segunda, que o redentor efeito daquilo que o saudoso treinador Joaquim Meirim apelidou de “chicotada psicológica” se pode manifestar de múltiplas maneiras. Ao seu modo, a invasão de Alcochete foi uma “chicotada psicológica”. E, se o Sporting quiser ser de novo campeão, vai precisar de outra. Modestamente, permito-me uma sugestão. Se António Costa quiser desviar, mais uma vez, a atenção dos Portugueses dos problemas do país, deve incentivar uma nova invasão de Alcochete. A cobertura televisiva não falhará e o “Sexta às 9” da RTP, que tanto incomoda João Galamba e o seu ministro, não conseguirá resistir. E se essa invasão for comandada por Eduardo Cabrita, de fato de treino e feroz olhar de terrorista do Hamas, então o resultado é infalível. O corolário natural do tiro aos pratos é claramente o tiro aos patos. E esses, segundo todas as aparências, estão receptivos ao desenvolvimento da modalidade.
Dito isto, espero que nem o Sporting nem o Benfica ganhem campeonatos nos próximos tempos. E não, não é por causa do Porto. É para poder dormir sossegado, sem a orquestra pós-moderna das buzinas assassinas.