1 As coisas são muitas vezes mais simples do que parecem: não via ou raramente via Luís Marques Mendes a analisar a nossa actualidade. Não me motivava o suficiente, para me sentar a frente do écran, já me chegara outros comentadores de que não era entusiasta (há testemunhas sobre a veracidade destas minhas declarações impopulares), a vida ia bem sem eles.
Depois, na transferência de Mendes para a SIC tudo se manteve numa espécie de limbo amolecido pela (minha) suspeita de ser ele um dos arautos do então já Presidente Rebelo de Sousa. Um dia, porém, li um escrito onde alguém comentava o comentador Marques Mendes pelo emprego que ele próprio fazia do seu lado histriónico. Usando-o enfaticamente na sua análise como um factor político poderoso — de aplauso, de discordância, de reprovação. Achei um bom ponto, aliado à velocidade e argúcia com que voava sobre temas e palavras: fiquei curiosa, prestei atenção.
2 Primeira surpresa, o comentador semanal passara com leveza e sageza a grande comunicador. É certo que sempre fora comunicativo, interventivo, activo, lembro-me bem dos tempos da liderança da bancada parlamentar do PSD; de comícios, intervenções governamentais e — santo Deus – dos nunca esquecidos congressos partidários desta agremiação e das abrasivas corridas à sua liderança. O certo porém é que Mendes afinara esse tom e apoiado numa gestualidade reconvertida politicamente em “factor”, inventara um modelo.
Mas, segunda surpresa, Marques Mendes planava agora na estratosfera do êxito mediático, era ouvido por mais de um milhão de pessoas e as suas fontes eram pródigas em jorrar informação, non stop. Como água a correr de uma torneira, só que aqui as torneiras são muitas, diversificas e claro, interessadas. Variam conforme os amores e humores políticos e as cores das estações mas delas sai sempre o precioso liquido da informação. E nesse sentido — e a comparação não deixa de ser interessante – enquanto Marcelo se bastava a si mesmo com os riscos inerentes, Marques Mendes não os corre: procura e ouve. Onde por exemplo Marcelo compunha, Marques Mendes antecipa. Não consta que antecipe mal ou desacerte muito, a avaliar pela ausência de desmentidos que (não) se abate sobre os seus domingos televisivos, (mas posso estar enganada ou ser ainda “fresca” na matéria.) E sobre o actual Presidente da República, uma achega: “a relação fortíssima de amizade que os une sobretudo desde 1997 é tão forte que nunca esmoreceu”. Mendes dixit.
Como se prepararia então um programa com esta audiência e influência? Quanto tempo de trabalho custam semanalmente estes vinte e cinco minutos dominicais? Qual o critério dos temas eleitos? Faltavam-me as respostas, fui buscá-las.
3 Fui buscá-las sabendo porém que haveria “zonas reservadas” mas essa era a regra não escrita. A zona reservada são as (óbvias) ambições políticas de comentadores a este nível que — até o mais ingénuo o alcança — não comentam de borla política. Sócrates, Santana, Marcelo, vieram a ter o destino que procuravam quando semanalmente se sentavam diante de três câmaras de televisão com intuitos políticos férreos, negando-os sempre. Chegaram “lá”. Marques Mendes (ou Paulo Portas por exemplo) não abrem o jogo enquanto… não fazem senão abri-lo ao autocolocarem-se — pacientemente, persistentemente, criteriosamente, semanalmente — na agenda política do país.
Um assunto a seguir, naturalmente.
4 Está sol no restaurante onde nos sentamos. Peixe, água com sumo de limão, um gelado, cafés. A conversa é menos comedida que o menu. Marques Mendes é já se sabe, um bom conversador enquanto eu constato para mim que a sua história política talvez não seja afinal tão bem conhecida quanto isso: começou, aos 17 anos, em Setembro de 1975, por assessorar o governador civil de Braga, mas se se acrescentar que ia começar o curso de Direito em Coimbra ou que um ano depois – sem nunca interromper estudos – era vereador a tempo inteiro e número dois da Câmara Municipal de Fafe, fica-se com uma ideia do personagem. Indissociável do efeito de interpelação que podia ter a política sobre a juventude que se acolhia no PSD nesses tempos de parto difícil , em que a revolução se transmutava em titubeante democracia. O certo é que o efeito se lhe colou a pele e à forma de vida (uma vocação?): em Novembro de 1985, com vinte e oito, estava já no primeiro governo de Cavaco Silva. Houve mais governos e mais pastas, enquanto houve também o parlamento, primeiro como deputado, depois como líder da bancada do PSD. Foram intensos, os anos do cavaquismo. Dos quais restam hoje uma “amizade intacta com Cavaco Silva”.
“Digo sempre meio a brincar que nunca houve rupturas nem fractura nas minhas relações com Cavaco Silva ou com Marcelo. Ao passo que a relação entre eles os dois… tem dias!”.
Então e agora? A política para Luís Marques Mendes é o quê ? Pesa quanto? Ah agora, “nada”.
O adeus é “definitivo”. Fechou.se um ciclo, garante. Tínhamos entrado na zona reservada. Finjo que acredito e passo adiante.
5 Marques Mendes é talvez o mais feliz espectador de si mesmo. Não lhe ocorre chegar a casa aos domingos vindo da SIC e andar para trás com o comando, à procura de se ver: “não gosta” mas “gosta muitissimo” do que faz e é isso que verdadeiramente o distingue. Quem o veja a declinar o seu domingo à noite, ouvindo-o dizer com entusiasmo que “já não lidera apenas nas classes A e B, mas já também nas C e D”, perceberá esse brio muito bem. Vê-se que o domingo é o eixo da sua semana, um misto de ocupação profissional, interesse intelectual e paixão política.
“Ah mas dá-me muito mais trabalho do que se pode imaginar… Trabalho todos os dias como advogado mas penso no programa, ao longo de toda a semana, estou atento à actualidade, ao que se passa e se diz. Telefono e telefonam-me. E quando não sei, procuro saber: pergunto. Ao sábado combino os temas com a SIC e depois passo o dia a preparar-me.” (Sub entendido: os melhores improvisos são milimetricamente encenados.)
E com Marcelo também se combinam temas? Recomenda o ex-comentador Marcelo Rebelo de Sousa, ao actual, Luís Marques Mendes, este tema, aquele recado, aqueloutra questão?
Não, claro, que ideia: ”Nem ele me pergunta, nem eu lhe digo. Sei separar as coisas”.
E sai um exemplo, não fosse eu estar distraída com os (deliciosos) filetes de peixe e não me lembrar da temível discordância que opôs estes dois cavalheiros, Mendes e Marcelo, a propósito da não recondução de Joana Marques Vidal na Procuradoria Geral da República.
“A nossa divergência aí foi total e completa!”. (Novo sub-entendido: e tem havido outras.)
O que interessa porém é que os três objectivos que se propôs cumprir, ainda Mendes estava na TVI, cumpriram-se: ser “claro, simples e pedagógico no seu comentário” e nada melhor do que “a rua” para lhe provar isso mesmo todos os dias; ser “imparcial”, não se permitindo tempos de antena sobre o que for; trazer sempre “alguma mais valia”: “Se no final do programa as pessoas ficarem mais informadas, mais esclarecidas, ou a compreender melhor este ou aquele problema, eu fico muito feliz, fui capaz de lhes trazer alguma coisa”.
6 Um homem feliz, sem dúvida. Poderoso e feliz, combinação singular. Do que não estou certa é de quando irá ele começar a acender luzes vermelhas ou mesmo a confessar vê-las já a brilhar no tablier dos condutores. Não que o não faça por vezes mas fiquei a pensar no que me dizia ontem, muito convictamente, um intelectual, atento observador da vida política, que encontrei por acaso na rua: “o Presidente necessitaria de mais sentido de Estado, o governo é fraquísssimo, o parlamento está dominado por uma gritaria histérica; há razões para estarmos seriamente preocupados” (o intelectual não é do PSD).
Aqui chegados, sobra uma pergunta: como usar bem felicidade e poder?