Quantos portugueses sabem quem é Charles Michel? Talvez cinco por cento, auxiliados pelas notícias dos últimos dias. Antes disso, talvez nem um por cento. Charles Michel, antigo primeiro-ministro da Bélgica, é, ainda, o presidente do Conselho Europeu, cargo que desempenha desde 2019 sem que a vastíssima maioria dos meus compatriotas (e, suponho, dos europeus em geral) desse por isso. A propósito: quantos portugueses sabiam há dois ou três meses que existe uma instituição chamada Conselho Europeu? Não arrisco um número para não ser acusado de optimismo. De qualquer modo, é para semelhante glória que agora desponta o dr. Costa.

Quem segue os “media” caseiros não ficaria com essa impressão. As festividades em volta da nomeação chegam a tais excessos que um distraído julgará que o dr. Costa foi nomeado para um cargo mais notório que o de Papa. E não para o cargo até aqui desempenhado pelo celebérrimo Carlos Miguel. Aliás, a celebridade do sr. Michel, superior à de uma estrela televisiva búlgara, deve-se inteirinha aos esforços do próprio em sair da obscuridade a que o cargo – além da intrínseca mediocridade, pelos vistos – o condenou. Na imprensa internacional, quase não há artigo sobre o tema que não denuncie os vãos esforços do sr. Michel para sair da sombra da senhora dona Ursula, e os esforços bem sucedidos para cair no ridículo. Um diplomata definiu-o como alguém “com ambição bastante maior que o talento”.

Alguns artigos em particular notam que as limitações do cargo começam logo na designação. Aparentemente, o presidente do Conselho Europeu não é exactamente um presidente, excepto na generosidade com que os franceses (e os portugueses) tratam o termo. Ao contrário do que o chinfrim patriótico sugere, o emprego consiste em receber com sorrisos os chefes de Estado ou de governo dos estados membros, cada um ao serviço da respectiva “agenda” e todos juntos num órgão que, para citar uma crítica, “é disfuncional e irresponsável”.

As funções oficiais do Conselho, que sai à luz do dia duas vezes por semestre, estão no Tratado da União Europeia: “dá à União os impulsos necessários ao seu desenvolvimento e define as orientações e prioridades políticas gerais da União” (desculpem, mas não sou o autor disto). Já as funções do presidente do Conselho não só estão no tratado como são um tratado em si. Gosto sobretudo da a) (“Preside aos trabalhos do Conselho Europeu e dinamiza esses trabalhos”) e da c) (“Actua no sentido de facilitar a coesão e o consenso…”). As funções b) e d) excedem-se em irrelevância. Parece que, além dos sorrisos, o dr. Costa terá de assegurar o “catering” e iniciar inúmeras frases com “‘Vamo’ lá ver…” Não é à toa que muitos juram estarmos perante o homem certo no lugar certo, e que ninguém, ninguém, ninguém possui habilitações sequer comparáveis. E o extraordinário é serem poucos a rir enquanto afirmam maravilhas assim.

“Vamo” lá ver… Primeiro ponto: o que explica que, de repente, imensa gente “saiba” que o dr. Costa é o presidente do Conselho ideal? Os “especialistas” avaliaram com minúcia o currículo e o carácter das restantes possibilidades faladas nos meses recentes? Houve um concurso de talentos que me escapou? Segundo ponto: mesmo que o dr. Costa fosse o portento político vendido pela nossa paroquial propaganda, há o obstáculo das línguas, visto que são várias as faladas no Conselho e o dr. Costa não domina nenhuma. Acontece que o dr. Costa obviamente não é o portento político vendido pela nossa paroquial propaganda. Por pudor, e vergonha na cara, nem comento as referências à “competência”, à “experiência” e ao “peso político”. No que toca à “construção de pontes”, a única que se lhe conhece é uma empreitada de 2015, que ligou o PS à extrema-esquerda e separou o partido dos combates de Mário Soares e, com curiosa frequência, do arco democrático. No que diz respeito a reformas, consta somente a dele, a qual será de 95% dos 32.100 euros brutos e mensais.

O facto é que, apesar das naturais bazófias do PS e de um “nacionalismo” deprimente que transcende o PS, a nomeação do dr. Costa tem uma importância idêntica à conquista de um campeonato internacional de pelota basca. O dr. Costa, outro com a ambição maior que o talento, vai substituir o sr. Michel apenas porque os arranjos que reconduziram a senhora dona Ursula exigiam que se compensasse um socialista, de preferência um socialista de uma nação periférica. Quanto aos arranjos que, por cá, permitiram ao dr. Costa livrar-se do país que ajudou a destroçar a tempo de ficar “disponível” para a “Europa”, esses são a única coisa interessante nesta história.

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