O recente anúncio da nova ministra da Saúde de que “o Hospital das Forças Armadas (HFAR) em Lisboa vai ajudar a criar centros clínicos para retirar doentes das urgências”, faz supor que um hospital que nunca foi desde a sua criação uma solução para os militares das Forças Armadas Portuguesas (FFAA) vai ser agora uma alternativa para os civis. De repente, lembrei-me da velha piada da unidade de medida de inteligência, o “tar”. Um sábio tem dez tar, um doutorado cinco tar, o cidadão comum um tar, um burro um decitar, um estúpido um centitar… e para os casos mais graves o militar! Passe a ironia e sejamos sérios numa matéria, tão fulcral para o País, que desde o Executivo ao utente, não pode merecer senão máxima responsabilidade e total seriedade.
Quando em Agosto de 2012, o então ministro da Defesa Nacional (MDN) acompanhava o processo de fusão das várias unidades hospitalares militares, nomeadamente o Hospital da Marinha, o Hospital Militar Principal, o Hospital Militar de Belém e o Hospital da Força Aérea, cujas valências foram transferidas para a unidade do Lumiar, agora HFAR, Aguiar-Branco, atual Presidente da Assembleia da República, referia que este hospital terá capacidade para abranger todo o universo a que se destina, “os militares e a respetiva família militar”, a par de um investimento total de 30 milhões de euros na sua melhoria, nomeadamente a unidade de cuidados intensivos, o serviço de urgência e o local da câmara hiperbárica. Dois anos depois, o mesmo MDN apresentava o Plano Diretor do Hospital, uma “resolução do Conselho de Ministros que assegura o financiamento de cerca de 18 milhões de euros para a concretização desta fase nos próximos três anos”, uma expansão que iria permitir uma “poupança de cerca de 4,5 milhões de euros do que seriam os gastos dos hospitais”. Este investimento em infraestruturas ficou reduzido a pouco mais de umas cercas balizadoras e de uns cartazes que ainda por lá estão colocados, tão velhos e desgastados como está o SNS.
Muito se poderia esperar desta boa intenção do Plano Diretor, congelado há vários anos, e a prática mostra-nos que os únicos milhões que chegaram à saúde militar voaram numa “tempestade perfeita” provocada pelas altas pressões “centristas” em tempos de ventos socialistas, de modo que são, ainda hoje, muitas as falhas e as deficiências deste sistema hospitalar. Quase uma década depois, é o próprio Tribunal de Contas em 2020 que “recomenda ao MDN que promova a conclusão da reforma do Sistema de Saúde Militar, “ e “reitera as recomendações anteriores no sentido de garantir que as receitas gerais previstas no Orçamento do Estado financiem todos os cuidados de saúde prestados aos militares no ativo e na reserva em efetividade de funções, independentemente do local de prestação, desonerando os militares deste encargo que têm vindo a suportar através dos seus descontos para a Assistência na Doença aos Militares (ADM).” Em Junho de 2019, o quadro de pessoal das unidades orgânicas do Estado Maior General das Forças Armadas (EMGFA) responsáveis pelo HFAR encontrava-se preenchido em apenas 65% e o défice mais relevante era o relativo ao pessoal militar diretamente ao serviço do HFAR, preenchido com apenas 52% dos recursos previstos, ou seja cerca de metade. Acaso o atual MDN, aquando da discussão deste assunto em Conselho de Ministros, não terá alertado a colega do Executivo deste crítico facto? Para colmatar as lacunas do quadro orgânico de pessoal, o HFAR tem recorrido a prestadores de serviços, designadamente médicos. Os prestadores de serviços médicos constituem cerca de 25% do total de médicos a prestar serviço nos Polos de Lisboa e do Porto, ou seja, o HFAR sofre do mesmo mal que o SNS sofre no geral, falta de médicos, neste caso, militares! Não será pelo facto de a senhora ministra ser esposa de um Oficial General da Marinha de Guerra que lhe advém o conhecimento da “coisa” militar. Também eu vivo com uma arquiteta e o meu conhecimento da arte é nulo, de modo que se o MDN não tiver o cuidado de dar a conhecer previamente o estado do edifício militar à colega, o risco da medida de emergência se tornar numa medida da incompetência é grande!
Sou quase levado a apostar que o conhecimento desta iniciativa terá sido uma total surpresa para os militares em que se incluem os principais responsáveis hierárquicos que dela terão tomado consciência pela comunicação social. Será este o processo que se pretende seguir no relacionamento entre o Governo e as FFAA?
Da missão do HFAR consta “prestar cuidados de saúde diferenciados aos militares das FFAA, bem como à família militar e aos deficientes das FFAA, podendo, na sequência de acordos que venha a celebrar, prestar cuidados de saúde a outros utentes”. Saberá a senhora ministra, por acaso, qual é a lista de espera no HFAR só para os utentes militares? Queixas de militares no ativo por uma mera consulta de especialidade demorar mais de 6 meses não são exceção. Mais, a aflição socialista com o estado lastimável a que deixaram chegar a Saúde já em inícios de Dezembro de 2023 fazia anunciar que o HFAR receberia doentes do SNS numa medida que faz parte do plano de contingência e é ativada para dar resposta à grande afluência nos serviços de internamento. O que resultou daqui? E quantos militares por falta de resposta especializada do HFAR tiveram em contrapartida atendimento assegurado noutro hospital público?
O Sistema de Saúde Militar (SSM) tem por missão garantir o apoio sanitário à componente operacional e, simultaneamente, assegurar a assistência médica aos efetivos militares e às suas famílias, procedendo a uma avaliação permanente dos recursos humanos que servem a força militar desde a sua admissão ao serviço. E é nisto que se deve focar e especializar o HFAR, sob pena de não servir nem a militares nem a civis. O apoio sanitário à componente operacional das FFAA, face à evolução ditada pelas novas missões, decorrentes dos compromissos internacionais assumidos por Portugal, ao novo cenário que se vive na Europa, não deixa margem para experiências teste de soluções à medida do problema do momento. Se, porventura, tivermos de dar resposta efetiva ao acordo celebrado com a Ucrânia e disponibilizarmos as camas para tratamento de militares feridos ucranianos, quantas camas vagas sobram no HFAR para tratamento de civis?
As necessidades de pessoal licenciado em Medicina, Farmácia, Medicina Veterinária e Medicina Dentária são gritantes e o recurso ao recrutamento através da Escola Naval e Academias Militar e da Força Aérea, mesmo com as admissões por concurso e em regime de contrato, ficarão agravadas se de repente tivermos que disponibilizar mais tropas operacionais num qualquer conflito. Por acaso, a senhora ministra da Saúde já olhou para o número de vagas de medicina que foram disponibilizadas no Ensino Superior Militar e quantas foram supridas? E o que dizer quanto à carência de Enfermeiros Militares e Técnicos de Diagnóstico e Terapêutica?
O apoio sanitário às missões em que as Forças Armadas atualmente participam acentuam a necessidade de preparar adequadamente o pessoal de saúde e todo o serviço de saúde militar do qual o HFAR faz parte. Neste campo era aconselhável o MDN relembrar a colega que, para além daquele fulcral objectivo, a saúde militar tem que se preparar para, eventualmente, ter que responder, além do que já faz e num cenário mais exigente, pela participação do pessoal de saúde nas tarefas de classificação, seleção, recrutamento e incorporação, quer no próprio HFAR, quer nas unidades territoriais, pelo aprontamento sanitário (observação médica, exames complementares e vacinações) prévio às missões das Forças Nacionais Destacadas (FND) e a avaliação sanitária do pessoal após o regresso, pelo apoio sanitário às FND, realizado sobretudo por pessoal colocado nos hospitais militares, nomeado para integrar essas forças; pela avaliação de doenças e/ou sequelas de lesões, relacionadas com o serviço militar, de militares e ex-militares, incluindo a realização de Juntas Médicas e, tudo isto sem descurar o apoio de saúde à família militar, neles incluindo ex-combatentes e deficientes militares. Sem dúvida que o papel dos militares é o de contribuírem com o melhor que sabem e podem a favor da sociedade civil em geral, mas caberá sempre aos políticos, além de atribuírem essas missões, disponibilizarem os meios e as condições para esse efeito. Esta missão, aparentemente ligeiramente pensada e pior atribuída ao HFAR, não só é imoral como é irresponsável e ineficiente. Maus dias todos temos. O da ministra da Saúde foi aquele em que anunciou o HFAR como solução de coisa nenhuma!