Tem, porventura, a sua graça que no tempo do hedonismo se tenha, ao mesmo tempo, cunhado a expressão “guilty pleasure”, prazeres culpados ou aquelas coisas de que se gosta, mas com pouca simpatia social, no fundo, algo apreciado com vergonha perante os outros. Sempre tive alguma dificuldade em aceitar o conceito, embora tenha, pelo menos, um. Há quem goste de ler revistas de celebridades, há quem aprecie o correio sexual dessas mesmas revistas, há quem se deleite com música pimba – é o meu caso, e não vejo razões para a culpa, não mais do que para o prazer. O meu “guilty pleasure” é ver, ouvir e ler um certo tipo de português, algo comum na elite, a que alguém, por razões desconhecidas, resolveu descrever como intelectual, talvez à falta de melhor adjectivo, e a que eu acrescentaria aqui, como complemento e para facilitar, lisboeta.

O intelectual lisboeta, note-se, pode não ser de Lisboa. Mas Lisboa é para ele o fim e o princípio de tudo. Do mundo, da vida e do seu próprio intelecto. O intelectual lisboeta tem numa certa e decadente Nova Iorque dos anos 80 o seu umbigo cultural, mas para ele o mundo livre não deixará, jamais, de ter origem nas portas da discoteca Frágil – de resto, a grande centrifugadora do espécime intelectual lisboeta, ele próprio, dentro da histórica danceteria, responsável pela criação, invenção e difusão silenciosa e de alcance restrito da pouca liberdade que este país alguma vez conheceu.

O intelectual lisboeta, quando não é lisboeta, perde o sotaque de origem e enquadra-se. Tem a absoluta certeza de que só ele e os amigos sabem ler, ainda que muitas vezes não compreendam o que lêem, e não passam os olhos por qualquer coisa. O intelectual lisboeta não lê o pasquim do crime, antes devora o pasquim da fofoca política. Até porque se há coisa que o intelectual lisboeta mais degusta do que descer a Nova do Almada com a sensação de que meio Eça de Queirós lhe entrou pelo corpo, é de conviver politicamente, mesmo que de longe. Porque o intelectual lisboeta, queirosiano até à medula, decorou que o país é uma choldra.

O intelectual lisboeta julga, pois, que o país é uma choldra, mas hesita na afirmação dessa certeza, até porque é na choldra que vive. Recomenda, por isso, a choldra. Ou recomendava. Porque o intelectual lisboeta, que, naturalmente, reside na parte aceitável da cidade e não num buraco operário qualquer, menos ainda no subúrbio, vive hoje os dias apavorado com uma capital repleta de turistas e estrangeiros residentes, descaracterizada e desumanizada, saudoso dos tempos em que os estrangeiros que por aí percorriam as calçadas eram todos mais pobres do que o auto-designado pobre intelectual lisboeta, serviam e não eram servidos, e não faziam subir os preços do Pap’Açorda.

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O intelectual lisboeta não faz turismo. Viaja. Ao passo que outros entopem hoje a sua Lisboa, descarregados dos cruzeiros e das companhias low cost, o intelectual lisboeta enobrece as capitais dos outros com o seu brilhantismo. O intelectual lisboeta não vai ao Algarve de férias. Ele “é” o Algarve, uma outra coisa, antiga, feita só de criados e praias desertas. O intelectual lisboeta não tem futuro, antes é feito de um passado glorioso que a sua já mais de meia-idade recorda com saudade.

O intelectual lisboeta não é lido, mas escreve. Não é visto, mas aparece. Não é escutado, mas fala. Tem à sua disposição uma pequena multidão de outros intelectuais lisboetas, alguns seus semelhantes, e outros que, não escrevendo, não aparecendo e não falando, consomem com fervor o seu pensamento copiado, a que vulgarmente se chama a sua produção intelectual. Convive frustradíssimo com um povo que não o compreende e que teima em fazer tudo ao contrário do que o intelectual lisboeta desejava que fizesse. Vota onde não deve, consome o que não deve, vai onde não deve, o país para lá da intelectualidade lisboeta força a sua presença onde seria dispensável e reforça a sua ausência onde seria mais apreciado. O intelectual lisboeta é, também, herói televisivo, boneco de entretenimento para a minoria letrada, ainda que de parca audiência, mas abomina o facto de a brigada iletrada, como lhe chamava Martin Amis, que aprecia citar, ser, ela própria, estrela televisiva em programas de entretenimento de enormíssima audiência, e que geram a receita necessária ao sustento das finanças do intelectual lisboeta.

O intelectual lisboeta é como um farol num promontório onde não passam navios. Merece, pois, o respeito, o recibo verde e a exaltação de quem cumpre uma tarefa prodigiosa e infrutífera. Bem-haja.