Vai progredindo pelo mundo uma certa pulsão totalitária vinda de boa parte dos agentes políticos, de esquerda ou de direita, num terreno cada vez mais aberto a essas vagas, em sociedades menos disponíveis para a liberdade. Não é nada de novo, na verdade, é humano, tão natural como ter sede, como dizia o anúncio.

Mas é sinal de que caminhamos para um mundo menos livre quando, em países como o nosso, que continuam com tantos problemas por resolver, grande parte do debate público se faça, entre esquerda e direita mas não só, a partir de pressupostos que visam a eliminação total do adversário e que, para tanto, passa a viver de uma perpetuação de discussões de micro-causas em micro-espaços que, na verdade, dizem muito pouco à esmagadora maioria das pessoas, e ainda, por outro lado, que haja uma disponibilidade crescente para proibir e obrigar terceiros a isto ou aquilo.

No final do dia, estando a direita resumida a insignificâncias partidárias, no que diz respeito aos temas que interessam, ou a um reactivismo encarniçado nos assuntos que dizem respeito a pequenas tribos, entre nós quem ganha é o PS, o único partido que ainda fala uma linguagem que a larga maioria dos portugueses consegue compreender e que, ao mesmo tempo, os trata como seres indefesos e sempre carecidos de alguma luminária que vá olhando pelas suas vidas. Já assistimos a isso a propósito da pandemia, tema a que, por fadiga, não quero aqui regressar, mas que deixou tudo isto muito claro. Os sucessivos estados de emergência, as medidas criadas avulso, em total desrespeito pela Constituição, foram, por um lado, recebidos sem contestação e até com alguma simpatia e, por outro lado, foram seduzindo os detentores de algum tipo de poder, do Governo ao Parlamento, das polícias aos lojistas.

Um dos mais recentes episódios que explica muito bem esta pulsão totalitária foi o da vereadora da Câmara Municipal de Lisboa, eleita pelo LIVRE na bolsa marsupial do PS, que conquistou o direito a que se conheça o seu nome graças à proposta de redução de velocidades nas estradas da capital e zonas com carros proibidos em determinados dias. Em entrevista à CNN, explicou ela que «as pessoas têm de perceber que é o melhor para a vida delas». A frase é lapidar, mas também irónica, considerando que foi dita por um membro de um partido que se chama «livre».

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É claro que a proposta é absurda por várias razões, a pior delas o facto de ter o potencial de afectar a vida de milhares de pessoas, alegadamente em prol da defesa do planeta – ao qual, aparentemente, a vida das pessoas é bastante indiferente. Mas aquela frase é um tratado.

Entretanto levantaram-se vozes contra as ideias propostas e a vereadora lá acabou por dizer que pode ser tudo implementado de forma faseada, o que, na sua cabeça, será porventura mais uma tarefa necessária à sua missão de nos fazer compreender o que é melhor para as nossas vidas. A senhora vereadora sabe, nós não; nós estrebuchamos, a senhora vereadora faz o esforço de nos explicar mais devagarinho, para nos irmos habituando.

No final, todos cumpriremos. Possivelmente, chegar-se-á a uma solução consensual que descubra alternativas viáveis para que os negócios não sejam afectados, para que o trânsito não fique ainda mais caótico e para que o volume do tráfego diminua. Tanto me faz. A ideia essencial de tudo isto não é a protecção do ambiente, a melhoria da qualidade de vida das pessoas, das que vivem na capital e das que a ela se deslocam, a economia local, os negócios, os empregos. Não. O que é essencial nesta (mais uma) polémica semanal é a ideia de que há alguém que se julga na posição de que sabe o que é melhor para a vida dos outros. A ideia de que alguém, por qualquer motivo que se desconhece, acha que pode ignorar a vida dos ignorantes em nome do que entende ser «o bem comum», como noutras situações «a saúde pública» ou «evitar o fim do mundo», na verdade em prol de um certo tipo de controlo e de engenharia social.

Não era sobre isto que queria escrever-vos esta semana. Mas sei que não vivemos tempos simpáticos para a liberdade e que a barbárie vem muitas vezes de onde as vozes que se fazem ouvir com mais vigor dizem que vem, mas também sei que bárbaros são muitas vezes aqueles que passam a vida a apontar o dedo a outros bárbaros e a anunciar a necessidade de destruição em nome do «progresso». São aqueles que sob o manto das boas intenções e das grandes missões transformadoras do mundo escondem uma vontade cruel de nos dizer o que devemos e não devemos fazer. São aqueles que sabem o que é melhor para as nossas vidas. Para eles, o fascista aqui sou eu.