Foi constituída uma Comissão Independente para aconselhar o Governo sobre a revisão do Regime Jurídico das Instituições de Ensino Superior (RJIES), tendo esta decidido organizar um conjunto de momentos de discussão temática, um dos quais ocorreu recentemente em Évora e se ocupou, em particular, das questões demográficas.
Trata-se de uma questão estrutural que vai condicionar o futuro do país, talvez como nenhuma outra, e que tem implicações fortíssimas sobre o sistema de ensino, como já se verifica no básico e secundário e não tardará a fazer-se sentir com grande impacto no superior. Embora seja apenas um dos tópicos a ter em conta, acaba por funcionar como um ponto de partida para repensar o sistema, matéria que deve interessar a toda a sociedade e não apenas à academia e ao mundo político.
A realidade que se apresenta é simples, mantendo a lógica de acesso e os públicos tradicionais, o número de estudantes decresceria fortemente e não seriam suficientes para preencher as vagas disponibilizadas por todas as instituições, facto que arrastaria muitas para a inviabilidade e o eventual encerramento. O uso do condicional significa que, partindo de uma realidade que é iniludível, é necessário encontrar antídotos e fazer do problema uma ocasião para superar lógicas ultrapassadas e práticas ancestrais, melhorando a organização e o funcionamento do sistema e aumentando a base de recrutamento de estudantes, tanto a nível interno como internacional.
Comecemos por uma divergência antiga, a relação privado-estatal. É sabido que o país tem um lastro ideológico estatizante que é secular e leva os poderes e uma boa parte da sociedade a olhar com desconfiança para o ensino privado, ideia absurda e contrária à liberdade de educação. O Estado é responsável por assegurar educação a todos, mas não tem de ser, nem deve ser, um operador educativo; educação pública não é o mesmo que educação estatal.
Nos estabelecimentos de ensino superior privados estudam cerca de 20% do total de estudantes, mas têm-se a sensação de que há responsáveis governamentais que parecem ocupar-se apenas das questões que dizem respeito às instituições estatais esquecendo-se que o Governo é do país, e que os estudantes que seguem os seus percursos formativos nas escolas privadas não são filhos de um deus menor.
Pelo contrário, são filhos de famílias que pagam os mesmos impostos, têm os mesmos direitos constitucionais no acesso à educação, mas pagam o custo real dos cursos que frequentam e algumas vezes ainda são discriminados, designadamente na frequência de estágios em serviços do Estado.
Outro ponto axial de discussão é a relação universidade-politécnico, ou seja, o sistema binário que, oficialmente, é estruturante do sistema, mas que, na prática, tem sido objeto das mais variadas subversões e de uma certa promiscuidade na ação. Reiterado como modalidade organizacional e não estando em causa a sua discussão, importa repensar o quadro normativo e clarificar como se devem articular as várias instituições na busca de maior eficiência global do sistema e aprofundamento das respetivas especificidades.
A recente possibilidade da outorga de graus de doutor por parte dos politécnicos é uma oportunidade e um desafio de enorme importância, não apenas por permitir reforçar a autonomia académica daqueles, mas por abrir espaço para doutoramentos de novo tipo e contribuir, não só, mas também, para um maior desenvolvimento de polos do interior do país onde existem politécnicos que necessitam robustecer-se em todas as dimensões.
Outra questão é a rede atual e a sua otimização; falar em rede é um equívoco pois não existe propriamente uma rede no sentido de existirem conexões permanentes, há instituições, que vivem por si e para si e que, episodicamente, estabelecem conexões e parcerias; mesmo nos casos em que estas têm sido mais aprofundadas não se pode falar de verdadeiras redes, a não ser em situações pontuais.
Naturalmente que a demografia e a ameaça da perda de estudantes, com mais gravidade para todas as instituições do interior, leva à necessidade de repensar o futuro e de equacionar como pode uma verdadeira rede minorar as dificuldades e potenciar os desafios. Será muito difícil, tendo em atenção as especificidades do país, mudar muito o panorama atual e tentar centralmente resolver o que deve resultar do consenso entre as instituições. Tudo o que possam ser fusões, criação de consórcios ou outras formas de agregação e ganhos de escala deverá ser conseguido por negociação entre as instituições, sem prejuízo do estabelecimento de balizas reguladoras por parte do poder político.
E esta discussão não se deverá limitar às instituições estatais, os problemas são globais e como tal devem ser entendidos, o sistema é diverso e todos os subsistemas devem ser considerados como partes interessadas, até porque no subsistema privado existem instituições muito pequenas que, naturalmente, têm de perspetivar o seu desenvolvimento num quadro cada vez mais exigente, até em termos da capacidade de assegurar condições de carreira para os seus docentes.
Ligado com a questão da rede deve analisar-se a realidade dos centros de investigação e as condições a preencher para a outorga de doutoramentos; é evidente que dificilmente uma instituição pode ter centros de investigação de excelência em todas as áreas técnicas e científicas, nem isso é desejável em termos de boa administração de recursos, pelo que ganha acuidade discutir a vantagem de ter centros de investigação que resultem de redes de instituições e de investigadores e não tanto cada instituição ter de ter o seu próprio centro, coisa que muitas nunca conseguirão.
A internacionalização e a captação de estudantes estrangeiros que permitam amortecer ou mesmo compensar a diminuição dos nacionais deve ser um tópico a considerar, reconhecendo ao ensino superior a capacidade de se tornar um serviço vendável em grande escala em todas as geografias onde haja défice de ensino superior e procura superior à oferta ou interessados em estudar num país europeu.
Evidentemente a língua tem levado a privilegiar as antigas colónias, mas não é suficiente, o futuro tem de se construir utilizando a língua franca em que o inglês se tornou e as escolas têm de passar a oferecer também cursos neste idioma. Esta tem de ser uma estratégia para atrair talento para o país e criar condições para que mais jovens aqui se fixem. É necessário ponderar as nossas debilidades, mas também as nossas vantagens competitivas, e estas são muitas e permitem-nos competir com os nossos concorrentes europeus.
Finalmente, é necessário repensar o acesso, criar condições socialmente mais justas, não esquecer que existe uma correlação evidente entre sucesso escolar e contextos familiares, favorecer a colocação de estudantes nas instituições do interior, facilitar as condições de acesso dos estudantes oriundos dos cursos profissionais, CTESP e maiores de 23, incentivar o recurso por parte de quem já está no mercado a utilizar as vantagens das unidades curriculares isoladas, que podem ser uma ótima via para adquirir novas competências ou melhorar as que já se possuem e explorar as potencialidades dos cursos breves e das microcredenciais.
Como resulta óbvio, a reflexão e as decisões sobre o futuro do ensino superior estão muito para além da academia e da política e devem suscitar o envolvimento de toda a sociedade portuguesa num amplo debate que torne acessível a todos os stakeholders e ao grande público participar na discussão de uma matéria que a todos diz respeito.