Pode até ser porque o inverno se aproxima e, com ele, vem o desconforto do escuro e do frio. E com isso se morra mais. Ou com o inverno viessem, desde sempre, um rasto de assombrações. E a morte parecesse surgir como uma silhueta que, mais ou menos furtiva, se intrometia ou se insinuava. A ponto dos mortos parecerem amotinar-se e querer levar com eles quem, de forma invejável, mais parecesse enamorado pela vida.

Pode até ter acontecido que um enredo profano surgisse como dia das bruxas. Na véspera do dia de todos os santos… E, no plano simbólico, o espírito de vingança dos mortos, evocado com o Halloween, se espantasse com fogueiras, lanternas ou tochas. Como se o fogo ou a luz o fizesse recuar. Ou o intimidasse, simplesmente.

Pode até acontecer que, ao fantasiarmo-nos, não deixemos de vestir a pele dos mortos, dos fantasmas ou dos maus, acabando a ludibriá-los. Fazendo-nos passar por seus iguais e fugindo ao seu furor de vingança. Pode acontecer que com isso fintemos o seu lado invejoso. E o mal que nos queiram. Ou não… E, ao fantasiarmo-nos, pretendamos, simplesmente, meter medo ao medo. Ficando mais fortes com isso.

Pode até acontecer que, ao evocarmos a presença de todos os mortos preciosos no nosso crescimento, tenhamos sabido opor ao desconforto do frio e do escuro o amor daqueles que, mesmo longe de nós, vivem connosco, todos os dias. Ou tenhamos descoberto que a melhor forma de espantar os medos é juntarmos todos aqueles que nos dão vida, trazendo-os para bem perto de nós, assumindo esse momento de comunhão como uma acção de graças pela sua existência, na nossa vida.

Seja como for, hoje é o dia das bruxas. E não deixa de ser um desafio que, num mundo tão pouco dado a assumir a linguagem simbólica como uma espécie de torre de Babel que atravessa todos as línguas do mundo, o comemoremos, cada vez mais. E não deixa se ser estimulante que, mal a morte se insinua na nossa vida, ela nos devolva ao que temos de mais profundo, de mais transparente e de mais próximo.  Até à próxima altura, no carnaval, em que, de novo, se exorcizam medos e fantasmas, e a ressureição e a festa desabrocham primavera adiante. Até ao verão.

Acontece que nem as bruxas têm sempre uma verruga no nariz. Nem os fantasmas nos atemorizam com uma voz cavernosa ou um riso sinistro. Acontece que as histórias de aflição ou de terror não surgem só nos filmes. Nem os calafrios nos chegam entrincheirados em estranhos. Quem nos rouba luz ou nos faz mal são pessoas como nós. Não têm nem um olho na testa nem a pele verde dum monstro. Algumas, são da nossa família. Outras, juram que o mal que nos  fazem é pelo muito que nos querem. O que, ironicamente, nos ajuda a perceber que as pessoas que nos dão vida nos podem, por vezes, empurrar inverno adentro, com a nossa conivência. E que, ao contrário do que parece no Halloween, o inverno não esteja para chegar. O inverno, por nossa distracção, vive em nós. Não devia ser assim. Mas, vendo bem, sempre que estamos sozinhos diante do frio e do escuro, o inverno somos nós.

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