1. Estou de pé na praça. Tenho sede. Mas sobretudo, tenho medo. Estou preso há 3 anos e há 3 anos não vejo os meus filhos. A minha mulher. E tenho medo. Penso neles e tenho medo. Na solitária, ao frio das noites do meu país das mil e uma noites, ou durante as horas em que o calor do deserto faz da cela um forno, fiz um contínuo apelo a Deus, ao Deus único, ao Deus de todos nós. Pedi-lhe para me libertar. Fui egoísta: pedi-lhe para me libertar. E também pedi perdão se O ofendi de alguma forma, embora não saiba bem de que forma O ofendi, se calhar não O ofendi, se calhar foram os líderes do meu país, os juízes do meu país, que me entenderam mal, ou O entenderam mal a Ele, mas isso não digo só penso porque só isso seria heresia: uma nova condenação. E ainda que tenha sido isso mesmo, peço na mesma perdão; só não quero que me chicoteiem. Tive um blog, Deus, um blog sem importância, para poder escrever livremente sobre o que quisesse escrever, foi só isso que fiz. É pecado, Deus?
2. Ralf Badawi ganhou o prémio Sakharov para a liberdade de expressão atribuído anualmente pelo Parlamento Europeu. É um gesto? É um grito. Olhamos para além das nossas fronteiras confortáveis, que cada vez mais se fecham sob a pressão dos que, a fugir da escuridão, as empurram, e apercebemo-nos de que, lá longe, medra um Mal qualquer; é um Mal indizível, que cresce, que se alimenta do nosso medo, do nosso comodismo, da nossa indiferença, um Mal que ameaça tornar-se tão grande que nem as nossas fronteiras muradas o deterão.
3. Estou de pé na praça. Um homem agarra-me os braços com força. Há uma multidão à volta, tremem-me as pernas, receio desfalecer, não quero desfalecer. Olho em redor rodando os olhos. Está um luxuoso carro branco mesmo à minha frente; olho e não vejo rostos amigos, só militares fardados, e gente de cara fechada, alguns gritam, tento escutar, é contra mim que gritam, estão zangados comigo, que lhes fiz eu? Continuo de pé, à espera, o suor cai-me do rosto como uma queda de água, é uma queda de água, uma queda. Um militar agarra-me os braços. E sinto a primeira chicotada no intervalo entre os ombros, uma espécie de choque eléctrico percorre-me o corpo. Segue-se a segunda, uma terceira, o sangue acorre aos locais dos golpes, que mudam, agora nas pernas, nas costas, em cima, em baixo, o coração pula, o meu coração pula senhores, quero gritar mas não grito, mais uma e outra e outra. E outra.
Estou de pé na praça, as mãos presas à frente do corpo e uma multidão indiferentemente ávida a observar-me enquanto recebo as 50 chicotadas. 10 anos de prisão? Que mal fiz eu a Deus, Deus?
4. O Parlamento Europeu, honra lhe seja – e tão poucas vezes as instituições da Europa têm merecido encómios nestes tempos de chumbo -, levanta-se em defesa de Ralf Badawi. Atribui-lhe um prémio, apela, pela voz de Martin Shulz, à sua libertação. Junta-se aos milhões de cidadãos – à Amnistia Internacional -, que há meses apelam ao mesmo: libertem Ralf Badawi. É essa a obrigação da Europa, dos europeus: levantar-se, gritar, e não só aos ouvidos dos sauditas, mas de todos quantos se arrogam ao direito de se fazer surdos aos apelos do Mundo.
A quem devemos gritar a nossa raiva contra o Mal que cresce a leste, contra o Mal que cresce a Sul, um Mal indizível e contudo mais visível do que nunca, que prende gente por pensar (e escrever), que prende mulheres por conduzirem automóveis no século XXI, que prende jovens que lêem livros em conjunto e protestam liberdade, um Mal tão feio e bruto que até aos Males antigos – os da tortura, da escravatura, da pena de morte – pede meças?
5. Dor. Estou de pé na praça e dói-me cada vez mais. Antecipo cada chicotada como os alpinistas a 100 metros do cume e sem oxigénio nas veias devem antecipar o próximo passo: mas, aí chegados, eles terão cumprido uma etapa mais do sentido da sua existência; o meu cume será apenas alívio momentâneo, o tempo de esperar por um milagre, da libertação, do fim das chicotadas, e das mordaças. O chicote morde-me de novo as pernas, bate agora numa refinada cadência, sinto as veias estourar debaixo da pele, o coração dispara, medo, tenho medo e não quero morrer, os meus filhos, o chicote, o chicote, tento parar de pensar no chicote, penso outra vez no fim das mordaças. E depois calo o pensamento (se calhar eles ouvem o pensamento), não Deus, não quero acabar com as mordaças, nem com os privilégios injustos, nem com a opressão das mulheres, nem com a falta de liberdade para falar, aceito tudo, tudo isso Deus, mas diz-lhes para parar agora, não posso mais. Não me ouviste Deus? Ai.
6. A quem pedir contas? O que fazer com este prémio, Ralf Badawi? O problema, dizem as cabeças pensantes, é que o Ocidente considera a Arábia Saudita um aliado estratégico vital (por acaso tem petróleo). O problema, dizem os jornais de referência, é que o Reino Unido vende mais armas à Arábia Saudita do que a qualquer outro país do Mundo. A Arábia Saudita é o maior importador mundial de armas. Já disse tudo?
7. São tantos os Ralf Badawi que o Mundo parece não ter capacidade para os curar a todos; ou não querer. O Ocidente, sobretudo, carrega sobre os ombros a tarefa de expiar 5 séculos de predomínio e exploração, complexo maldito, que sustenta a ilusão de que os Males de hoje se justificam pelos Males de Ontem. Tanto disparate acumulado: o fardo do Homem Branco foi-se, sobra o fardo de uma Humanidade ameaçada por um Mal que não dorme. Um Mal que não tem igual nem no tempo nem no espaço, pois que no tempo em que vivemos há informação e conhecimento sem igual em tempo algum.
Ou seja: não há desculpas. E não devia haver perdão.
São tantos os Ralf Badawi. Um inglês velho de 74 anos, sobrevivente de cancro, foi preso há um ano no Reino por transportar vinho feito em casa. Condenaram-no a 350 chicotadas; morreria Karl Andree, asmático, se apenas um punhado deles caísse sobre a sua pele. Salvou-se graças à intervenção do governo inglês: é libertado para a semana. Sabemos pois que o governo inglês, quando quer, pode (suspeito que o mesmo se aplica a outros governos por essa Europa, América e Ásia fora). E quem libertará Ali al-Nimr, condenado à crucificação? Ou o jovem mauritano Mohamed Mkhaitir, culpado de blasfémia por denunciar a forma como o Islão está a ser usado para propagar uma hierarquia estrita e estratificar as classes sociais?
Tantos Ralf Badawi. Há muitos espalhados pelo Mundo, da Angola que nos é tão cara (e nos acusa como se fossemos nós os culpados) a outros países africanos e asiáticos. Mas perante o Mal que se levanta próximo de nós, como não o ter em conta, e fazer de conta que não existe?
7. 50 chicotadas, só faltam 950. Estou de volta à cela. Em solidão. Pergunto-me como estará a Ensaf e os miúdos. Tenho as costas a arder, o peito em fogo, as entranhas em cinza. Estranho, não me chicotearam as entranhas. De momento estou no catre, inanimado, de barriga para baixo. Imagino que em breve virá alguém tratar-me. Dor. Apetece-me voltar a perguntar a Deus que mal lhe fiz eu, mas não o vou fazer. A verdade é que já sei por que razão Ele não responde: tem receio de se enganar e de cair no desagrado dos Guardiães da sua Fé.
9. O Mundo está melhor, dizem alguns. E eu acredito, está melhor para alguns. Podemos fazer alguma coisa? Eu, os caros leitores, os portugueses? Não sei se podemos, mas sei que devemos. O quê? Escrever. Falar. Gritar. Tudo o que não podem fazer os Ralf Badawis do planeta. Pegar neste texto, nos textos de Badawi, em todos esses textos e partilhá-los, distribuí-los, enviá-los por cabo pelos caminhos da Terra até que rebentem na boca do Mal, às dúzias, aos milhares, aos milhões, e destruam a sua essência maléfica.
10. A tortura e a impiedade não são Humanas. São a essência do Mal.
CONTEMPORÂNEO